Não há espírito sem corpo
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1) Qual a relação entre performance e dança? Existe uma correspondência sinérgica? São duas linguagens diferentes ou duas camadas da mesma linguagem?
Ana Gesto: A performance é uma linguagem nascida no Sec. XX, tendo por principal base o uso do corpo como objeto artístico e o tempo real como elemento fundamental. O corpo do artista passa a ser um elemento a mais na obra, não como protagonista, mas como material necessário e imprescindível para a construção da obra. A performance (ou arte de ação) acontece obrigatoriamente no tempo. Tempo real. Minha formação e o meu trabalho se desenvolvem dentro do âmbito das artes plásticas e a minha relação com a performance tem mais a ver com as ferramentas e o uso do espaço pela escultura, pelo desenho, pela pintura, fotografia, vídeo etc. Portanto, não posso falar do ponto de vista da dança. Ainda que todas as disciplinas cênicas contemporâneas façam uso das novas ferramentas que a performance nos ofereceu. Um replanejamento do processo artístico, incluindo o corpo do artista como matéria plástica.
Márcio-André: Eu tenho uma visão decisiva a respeito: não acredito em “linguagens artísticas”, nem que haja níveis diferentes entre elas. Penso que são apenas nomes que passamos a usar para definir estâncias indefiníveis (ainda que os utilizemos para facilitar a comunicação). Portanto, é desnecessário cogitar se há uma relação ou não entre performance e dança. Compreendo que essas duas artes especificamente (dança e performance) tenham motivado sua pergunta pelo fato de ambas evidenciarem o corpo – note bem, “evidenciarem” – o que supostamente criaria entre elas uma relação maior que com as outras. O corpo seria então o centro do debate. Entretanto, num nível mais radical de consideração, o debate deixa existir se nos perguntarmos se é possível forma de arte fora do corpo. Obviamente, sequer há a possibilidade do humano fora do corpo. A arte, por sua vez, é a estância do real que mais presentifica o corpo. Assim, para além da “evidenciação” que há do corpo na dança e na performance, deveríamos nos questionar se há mesmo qualquer distinção entre essas artes e todas as outras. Por exemplo, a poesia não radica no corpo? Qual parte do cérebro usada por um escritor não pertence ao seu corpo? Suas mãos não são parte do seu corpo? Sua imaginação não é parte do seu corpo? E o poema também não se faz ao ser passado para o papel, quando o autor o lê em voz alta, retocando até mesmo a aparência do texto no papel? Toda obra criadora só pode ser realizada com o corpo, pois só o corpo pode criar – ainda que não esteja em evidência na criação. Escrever um poema parte da mágica sinergética dos movimentos linfáticos: a métrica da voz é o sentido pleno que a dança tem nas palavras. Ora, o corpo não se resume ao que pode ser estudado biologicamente. É o corpo que nos permite ser no mundo. É só uma questão de conseguir perceber isso. Porque o contrário também ocorre: há formas de “evidenciar” o corpo sem usá-lo de fato. Por exemplo, cumprindo um trabalho alienado, seguindo tendências de compras etc – tudo isso usa o corpo, mas não em prol dele mesmo, e sim de um sistema criado para condicionar o corpo. E esse sistema é o mesmo que diz que há diversos tipos diferentes de arte. Porque compartimentar a arte é também condicionar o corpo. O corpo é, portanto, propriedade de quem toma consciência dele. Daí podemos inferir que performance é dança, como um ato sexual é dança, como a poesia é dança e todas essas coisas são dança e ao mesmo tempo não o são, porque “dança”, “poesia”, “performance” são apenas maneiras de chamarmos as coisas a partir de seus resultados estabelecidos pelas instituições formais (a história, a estética, a sociologia, a filosofia etc) e não pela energia fundamental a toda criação.
2) Seria possível a criação de uma poética da performance e por que? Quais seriam os vasos comunicantes entre esta poética e a poética em si?
Ana Gesto: O que significa a criação de uma poética da performance? A poética, no meu caso, é um dos objetos principais em todo o processo artístico, a busca de um discurso poético; não narrativo. A poética dos materiais, do espaço, do corpo, do som. Não está a poética em todas as artes? Uma poética específica da performance? A fenomenologia do espaço, a poética do virtual, a presença da materialidade do corpo, os objetos, o acontecimento. Dentro de todos estes parâmetros talvez se possa estabelecer uma poética da performance. Em todo caso, essa não é minha responsabilidade, nem a minha especialidade; isso eu deixo aos teóricos da arte. Eu me encontro mais cômoda na exploração matérica e conceitual de todos estes elementos durante a criação. Pois como diz Julio Miranda, “Corpos escrevem o poema do corpo”.
Márcio-André: Bem, acho que parte dessa pergunta foi respondida na questão anterior. Quanto a questão da poética, não é preciso criá-la – aliás, isso nem se cria –, pois já há poética na performance, como, em todas as coisas, há poética. Para que fique claro o que quero dizer, é preciso antes esclarecer alguns pontos, pois há sempre muita confusão quando falamos em “poética” e “poesia”, o que gera alguns equívocos (os mesmos que, por exemplo, evocam debates pueris como “se letra de música é ou não é poesia” ou “se poesia é ou não é literatura”). “Poesia” e “poética” têm suas origens no verbo grego “ποιείν”, que por vezes é traduzido meramente por agir ou criar. Na verdade, o termo apontava para um nível mais profundo da ação e da criação, mais propriamente para a energia por trás de todo ato criador. Não é, portanto, um qualquer agir ou criar, gerador de uma ação ou produto no tempo e no espaço, mas o agir do agir, em seu movimento descontínuo de flexionar a realidade onde se desenrolará a ação e a criação. É o ato fundamental do homem no espaço cênico do mundo, onde, ao criar, ele cria a si mesmo. Logo, esse tal princípio sinérgico está em toda obra, pois leva o que há de mais fundamentalmente humano consigo – uma vez que só o humano pode construir aquilo a que chamamos “obra”. Foi por mero acidente histórico-etimológico que o substantivo derivado de ποιείν – ποίησις –, ao nomear o produto dessa ação, passou a designar também, sobretudo nas línguas neolatinas, o poema, como normalmente o compreendemos. E é normalmente aí que se instaura a confusão: ao não se considerar dois níveis para a palavra poesia e não compreender que ela também se refere à matéria intangível na qual se funda toda criação artística, incluso o poema. Em alemão, essa ambiguidade é desfeita, pois há dois termos distintos para designá-las: Dichtung e Poesie. Por outro lado, muitas vezes se entende “poética” como “manifesto”. Esse é outro nível da palavra e está relacionado à forma com que Aristóteles a utiliza no “Peri poietike”. O manifesto é um discurso, um delimitador conceitual da poesia ou de qualquer instância do real, e acaba sendo o oposto desse sentido mais profundo de “poética”. Eu suponho que a “poética” a qual você se refira não seja um mero conjunto de técnicas, mas esta definição ancestral que diz da própria essencialidade das coisas em sua plena poesia. O poético está, portanto, em todas as coisas (não somente no poema) e delas pode ser extraído enquanto uma poética – sua poética. Não importam as classificações posteriores baseadas em forma, que variam de época para época e definem somente os maneirismos de sua própria época (é por isso que debater se letra de música é ou não poesia ou se poesia é ou não literatura é tão equivocado quanto debater se o que define o cavalo é a sela. São questões que nada tem a ver com poesia e interessam mais ao Ecad que aos artistas). Não sei se me fiz entender, mas o que tento mostrar é como a arte da performance não depende de qualquer intervenção teórica para vigorar enquanto um ato poético pleno.
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3) Falem um pouco sobre as suas trajetórias e como e por que ambos convergiram para a performance?
Ana Gesto: Minha trajetória parte quase desde a infância. Venho de uma casa onde se viveu a arte sempre com grande paixão e intensidade. Meu avô, meu pai, minha irmã, são todos artistas. Quase desde que tenho consciência, sei o que iria ser quando fosse velha. Comecei com a pintura desde muito jovenzinha, depois estudei Belas Artes na Universidade de Vigo e na Faculdade de Belas Artes da Universidad de San Carles de Valencia, me formei em performance com Bartolomé Ferrando. Cursei o doutorado na Universidad de Vigo e fiz parte do grupo de pesquisa Resistencia y Materialización, do qual agora sou colaboradora. Apresentei trabalhos de performance em Santiago de Compostela, Pontevedra, Vigo, Lugo, Valencia, Tenerife, Madrid, Girona, Lisboa, Coímbra, Évora, Varsovia, Piotrov Tribunalsky (Polonia), entre otros. E participei em diversas exposições individuais e coletivas com vídeo, escultura, pintura, fotografia etc. Minha obra sempre girou em torno das práticas corporais e do corpo como expressão, derivando, na maioria das vezes, em arte de ação. Em qualquer arte que pratico, o conceito de corpo, espaço e tempo sempre estao presentes em maior ou menor medida.
Márcio-André: Marcelo, você sabe que eu sou um perdido na vida. Como todo perdido, eu não me contento em estar parado. Eu sempre tive esse problema disfuncional, típico dos hiperativos disléxicos que desejam se tornar alcoólatras, de não conseguir assim só dizer com o texto escrito. Sempre gostei da figura do bardo, do trovador medieval e sua forma múltipla de levar poesia diretamente ao povo. Desde garoto, estive envolvido com poesia medieval e tentava recriar aquela lírica distante na realidade árida dos subúrbios cariocas. Irajá foi assim a Provença de minha adolescência. Pois a poesia para mim sempre esteve na rua, na vida, em contato direto com as pessoas. E para isso, eu devia fugir dessa idéia de poesia unideterminada. Fui buscar os poetas que exploravam outras dimensões da palavra ou do livro, como Mallarmé e Cummings, e também o que havia de poesia na música, na dança, nas artes plásticas. Daí, fundei com Victor Paes e Antônio Bizerra, o Arranjos para Assobio, que era um grupo de pesquisa na UFRJ. Fazíamos apresentações, misturando poesia sonora, teatro grego, teatro no, musica contemporânea, funk, humor paródico e outras besteiras. Depois que o grupo terminou, inspirado por um encontro com o amigo Ricardo Aleixo em Buenos Aires, comprei um macbook e comecei a pesquisar softwares de processamento de som e maneiras de explorar a palavra eletronicamente, com o auxílio do violino. Enfim, paralelo ao meu trabalho de escritor, dei seguimento ao meu trabalho de performer, tentando descobrir como confluir tudo de dentro para fora. No meio do caminho, estudei violino, me formei em poética pela UFRJ, fundei a Confraria do Vento, lancei alguns livros, dei aulas como professor convidado em algumas universidades na Europa e fui errar pelo mundo.
4) Comentem suas ultimas criações enfatizando os aspectos gnosiológicos e ontológicos, como estas criações surgiram em vocês?
Ana Gesto: Desenvolvo minha obra em torno de práticas culturais e sociais de forma apaixonada, trabalhando habitualmente com materiais de forte caráter simbólicos e identitários, centrando meus interesse nos processos sonoros que geram-se através da ação e interação com os objetos transmutados. Meu trabalho tem uma base forte sobre o processual, derivando cada projeto em várias ramificações. No processo que vivo atualmente, tempo e identidade sao muito importantes, a reflexão sobre eles forma parte do meu presente. Estou trabalhando com sensações que vão em torno da ideia de resistência, da mudança do corpo, da leveza das coisas condicionadas pelo acionamento do corpo… Os objetos com os quais trabalho são objetos que encontro ou que me encontram e que estão relacionados com o meu cotidiano e com o simbólico deste cotidiano. São objetos que logo transformo em escultura, em instalação, para formarem parte de minhas ações. O som forma parte do meu imaginário, este que está fortemente influenciado pela minha cultura. Na Galiza, nascemos com som: comemos, dormimos, fodemos e vivemos com a música. Não penso em meu trabalho propriamente como uma partitura, e sim como uma referência. Não há musica exatamente, mas sim a exploração e experimentação sonora. O som é um elemento fundamental em minha vida e, portanto, em minha obra.
Márcio-André: Minha ultima criação foi Suspensión, que preparei para o Museu Eugênio Granell, na Espanha. Era uma performance que acontecia dentro de uma espécie de cama de gato gigante. Como o meu maior interesse sempre foi evidenciar o corpo em minhas performances, eu enfrentava um grande desafio por estar “preso” ao violino e aos instrumentos. Ficava muito limitado, sem sair do lugar. Então, a idéia de Suspensión era deixar os instrumentos suspensos no meio da sala por cordas elásticas, de tal forma que, através das cordas, eu poderia executá-los de qualquer ponto do espaço. Isso me possibilitava também alterar o som através da própria tensão dos elásticos e da forma que eu os soltava ou os percutia, podendo intensificar o efeito ou alterar os timbres, em tempo real, com o auxílio do computador. Então, caminhando entre o público, eu podia criar imagens não só poéticas e sonoras como também corporais. Podia ler um poema deitado ou ajoelhado, podia me arrastar etc. Foi uma evolução para mim. Sobretudo, porque como meu trabalho é sempre uma busca pelo sagrado e tem um ponto xamânico, era uma forma de tentar trazer o público para dentro do “templo”. Ali, ele podia estar sentado (ou deitado ou de pé) entre os instrumentos, podia intervir se quisesse ou apenas aproveitar – mas nunca de forma passiva, como se estivesse sentado na platéia de um teatro, mas ativamente, como parte do ritual.
5) Qual o papel do corpo e do improviso no processo de criação de vocês?
Ana Gesto: Nosso corpo é um instrumento de ação. Mais do que de “improviso”, prefiro falar de “acontecimento”. Meu corpo se entrega na obra e a materializa obrigatoriamente no tempo. Quando estou no processo de criação de uma ação, passo meses desenvolvendo um projeto para ser materializado através de variadas formas efêmeras, que, em sua maioria, não ultrapassam os trinta minutos de duração. O corpo é uma carcaça, uma engrenagem, não interpreta um papel de improviso deliberado, mas se deixa ser com os materiais, o tempo e o espaço. O corpo não é o de um ator, não interpreta. Simplesmente é acionado. O corpo se separa com situações que possivelmente nunca experimentou e, nesse procedimento de fazer do corpo um elemento essencial (porém nunca o mais importante), aparece a surpresa, o encontro, a investigação. A obra surpreende o corpo, me surpreende, me mostra, me deixa ser. A performance é uma linguagem que sempre traz emoção, intensidade, força e uma consciência sobre a presença do meu corpo e do tempo. Uma exploração espacial constante, um redescobrimento e uma redefinição contínua do espaço. Além disso, cada experiência corporal, sonora e espacial deixa uma pegada. Seja tanto em forma de registro ou em forma de (na maioria das vezes) escultura e instalação. A ação do corpo está sempre presente em minha obra. Parto sempre da experiência corporal, espacial, temporal e sonora.
Márcio-André: Bem, penso que o corpo é fundamental, não como “matéria” ou “tema” da criação, mas pela maneira que permite todas as criações. Ora, se é o corpo que faz a nossa mediação com a realidade – já sendo, ele próprio, nós e realidade – é impossível criar sem a presença do corpo. Estamos no corpo (e não consigo pensar um instante em que estejamos fora dele) quando criamos. Mas acho que já falei disso. Queria apenas frisar que para mim o corpo é aquilo que torna a obra possível em seu possível ato de reverenciação do real. Por exemplo, quando produzimos um som com um tambor, precisamos colocar nosso corpo numa determinada postura, adequando-nos a melhor forma de extrair o som dele. O mesmo se dá com um artista plástico que precisa se colocar em determinadas posições para trabalhar um material, ou um fotógrafo que precisa dedicar uma postura adequada para o ângulo desejado. A obra, por sua vez, só surge nesse instante em que o corpo age sobre algo. Mesmo um poema, só surge no instante em que o escritor se prostra contra o papel ou o computador e com isso joga para o mundo o que antes não era nada. Além disso, quando se saca uma foto, se fez necessário aquela luz, aquela composição arquitetônica já existente e que contém a sua história própria, o acaso que levou o artista a estar ali ou a ter criado aquela situação, mas, acima de tudo, foi preciso que tudo estivesse confluindo para a situação daquela foto (mesmo que seja uma foto planejada em estúdio). Todos esses elementos, que provém de diversos lugares distintos no tempo e no espaço, se confluem ali, naquele instante, pela ação do corpo, em um total ato de devoção e reverência desse corpo à realidade. O corpo, portanto, é o que dinamiza a obra, na medida em que se coloca em determinada postura para adorar aquilo que está ali enquanto real – porém que ainda não está dado enquanto obra. Da mesma forma, o espectador dessa obra também precisará adequar o seu corpo à melhor postura para observá-la. Não se lê um livro sem fazer ginástica. Então, melhor do que falarmos do papel do corpo na obra, seria falar da obra na dinâmica do corpo. O improviso é somente a fala com a qual o corpo pode dizer de si mesmo: o corpo livre para criar-se espontaneamente em tempo real, confluindo o instante em si. E essa é a única maneira com a qual eu posso fazer uma performance, uma vez que a performance é criada em tempo real, diante do público.
6) Quais são os aspectos políticos buscados em suas criações, onde entra a manifestação política em seus últimos trabalhos?
Ana Gesto: Todo ato de criação artística é político. Porém não sou ativista de nada e ao mesmo tempo sou de tudo o que vai me apetecendo em cada momento de minha criação. A obras é suscetível de ser interpretada livremente e sob qualquer ideologia que o espectador deseje. Porém, minha intenção nunca parte nunca de um discurso em particular. O que, sim, tenho claro é que não pretendo, em nenhum momento, produzir somente para a crítica ou para os especialistas da arte. Minha obra não está feita somente para artista ou o publico específico da performance. Por conta disso é que, no geral, levo a peça sempre para fora dos espaços formais voltados para a arte, procurando espaços mais transitados, mais híbridos, de onde o contexto arquitetônico e social dao complexidade a ação. Quando é um museu, procuro eleger espaços intermediários, como halls, escadas, saguões, etc. Não tenho interesse pelos espaços neutros. A oferenda e o ritual são conceitos que estão extrínsecos em mim, talvez por minha ligação com a cultura do lugar onde nasci. Como disse anteriormente, o público tem um papel importante em minha obra. De alguma maneira ele a constrói, a enriquece e a faz evoluir. A relação entre o pessoal e o social em minha obra é inevitável. Sou um ser social em interação constante com os outros.
Márcio-André: Nunca penso numa “manifestação política”, mas é preciso pontuar que toda boa obra é sempre política. No meu caso, gosto de pensar que a postura política de minha obra se dá contra a automatização e as formas estabelecidas de se pensar a realidade, contra a assepsia e contra a instrumentalização em todos os níveis da vida. Quero que quando entrem na minha performance ou nos meus livros entrem num outro universo. Um universo radical e violento o suficiente para saírem dali mais próximos de si mesmos. Meu interesse não é fazer “musica experimental” ou “poesia experimental”. Meu interesse é que o leitor vivencie poesia e som através de uma experiência total de imersão e com isso possa questionar o seu papel no mundo. Definitivamente, a tentativa da minha arte é tirar o alicerce das pessoas e não confirmar as suas certezas.
7) Márcio, qual a diferença de recepção de seu trabalho no Brasil e na Europa?
Márcio-André: Na verdade, são muitas. É até difícil explicar, porque é uma mudança não só de recepção, mas da possibilidade de recepção. Aqui há muitos espaços para o que faço. Mesmo os alternativos, geridos por iniciativas pessoais, são frequentados e há sempre propostas muito interessantes surgindo. As editoras também parecem mais abertas e interessadas em coisas realmente novas (e parecem ter menos dificuldades financeiras que as brasileiras, apesar da crise). No Brasil, a coisa começa a mudar e com as redes sociais têm surgido muitos coletivos e jovens artistas rompendo as regras do jogo, mas estamos ainda muito aquém de ser um espaço fértil para quem está começando. Por exemplo, quando lancei os Ensaios Radiativos, o livro recebeu uma crítica muito dura na Cult e no Globo, focadas na extensão da orelha do livro, no caráter sócio-econômico do autor (que era mais baixa que a do resenhista) e nas gralhas de português. Parecia até piada. O livro está sendo reeditado na Espanha e o pessoal aqui se incomodou também, mas com outras coisas: com as questões que o livro aborda e o que implica, entre elas a atitude que foi a de visitar uma cidade contaminada por césio. Isso sequer foi levantado na crítica brasileira, que não entendeu que o livro partia de uma postura irônica frente a uma atitude real de risco de vida. Tudo foi assim, levado para o campo do folclórico. É como se o episódio de Goiânia não tivesse servido para o pessoal compreender o que é afinal ser contaminado por césio. Parecia algum tipo de analfabetismo funcional do espírito, vai entender. Eu fiz uma performance na Espanha, e no dia seguinte havia uma crítica no jornal. Na Hungria, na Holanda, na Inglaterra, na França, a mesma coisa. De alguma maneira, querem debater o que está rolando. No Brasil isso dificilmente acontece espontaneamente, se a coisa não vier com uma estrutura muito pesada e estabelecida por trás. A lógica midiática e da celebridade é ainda muito forte (estão todos tão narcodependentes da TV, que a mídia cultural vai pelo mesmo caminho) e isso determina que as relações interpessoais travadas nos bastidores decida o que chegará ou não ao leitor/espectador. É mesmo uma pena!
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8) Citem trabalhos de outros performers com afinidade com o que vocês estão desenvolvendo e diga o porquê dessa afinidade?
Ana Gesto: Bartolomé Ferrando foi meu mestre, portanto, uma grande influência no uso do tempo, espaço, presença e som, Esther Ferrer é uma referência no meu trabalho, sobretudo no aspecto em que minha obra se expressa – pelo geral, através da escultura, da instalação, do som e do corpo como ativador de tudo isso, seja em tempo real ou não; (tanto de Esther como de Bartolomé utilizei exercícios e propostas para aplicar em minhas oficinas de performances); E há também muitos outros artistas com os quais sinto afinidade. Além, claro, dos artistas nem sempre associados à performance, vindo de outras áreas. A cada época vou mudando ou ampliando essa grande lista.
Márcio-André: Bernard Heidsieck, sobretudo, pela forma que esquematiza o poema como partitura; John Cage, por me ensinar sempre outros caminhos com a poesia e a música; Laurie Anderson e Serge Pey, por mostrarem-me que a poesia sonora pode ser algo que alcance um público “leigo”.
9) Onde podemos encontrar registros do trabalho de vocês na rede de computadores?g
Ana Gesto: Há um provérbio alemão que diz que “não há espírito sem corpo, a não ser que seja um fantasma”: http://anagesto.blogspot.com
Márcio-André: Eu faço uma compilação dos últimos trabalhos realizado em meu site www.marcioandre.com e também no blog http://intradoxos.blogspot.com
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Márcio-André é escritor, artista sonoro e visual. Autor de quatro livros de poesia e ensaios, colaborou com diversos jornais, entre eles O Globo, Jornal do Brasil, O Estado de Minas; e com revistas brasileiras e internacionais. Foi traduzido para dez idiomas, além de integrar diversas antologias. Seus poemas inspiraram o filme “The Gospel according to the sea”, de 2011, dirigido pela cineasta teuto-canadense Iva Kvasnička. Deu aula de formação avançada em escrita criativa e poesia sonora na Universidade de Coimbra e na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em 2008, recebeu a Bolsa Fundação Biblioteca Nacional, pelo livro de ensaios Poética das Casas e, em 2009, foi poeta residente em Monsanto, Portugal. Realizou performances no Reino Unido, França, Espanha, Portugal, Ucrânia, Hungria, Holanda, Argentina, Peru, Canadá, além de diversas cidades pelo Brasil. Atualmente vive na Espanha. E-mail: marcio-andre@confrariadovento.com
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Ana Gesto (Santiago de Compostela, 1978). Licenciada em Bellas Artes pela Universidad de Vigo e formada em performance na Universidad Politécnica de Valencia com Bartolomé Ferrando. Além de performer, é artista visual. Seu trabalho transita entre a performance, o vídeo e a escultura, aprofundando o potencial documental do meio performático. Desenvolve sua obra em torno das práticas culturais e sociais de forma apaixonada, trabalhando normalmente com materiais de forte caráter simbólico e identitário e focando seus interesses nos processos sonoros gerados por meio da ação e interação com os objetos transmutados. Seu trabalho tem um forte componente sobre o processual, derivando cada projeto em várias ramificações.
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Marcelo Ariel nasceu em Santos, 1968. Poeta, performer e dramaturgo. Autor dos livros Tratado dos anjos afogados (Letra selvagem, 2008), Conversas com Emily Dickinson e outros poemas (Multifoco, 2010), O Céu no fundo do mart (Dulcinéia Catadora, 2009), A segunda morte de Herberto Helder (21 GRAMAS, 2011) entre outros. E-mail: marcelo.ariel91@gmail.com
14 outubro, 2012 as 22:58