Mobilidade, imobilidade e capas amarelas


Atuação performática de Captas (2010). Performer: Joevan Oliveira

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Falar ao telefone celular é, sem dúvida, uma prática indissociável de nossa vida moderna. Difícil encontrar alguém que não faça uso da tecnologia móvel e quando encontramos, nos surpreendemos. Certa vez, um amigo artista nos relatou a dificuldade de fazer com que outras pessoas acreditassem que ele não possuía um aparelho celular. Em sua profissão, o número de seu telefone celular sempre foi bastante solicitado. Seja ao marcar reuniões ou mesmo quando alguém iria aguardá-lo no aeroporto em sua chegada a outra cidade, ao ser perguntado sempre dizia que não possuía. Embora fosse a mais pura verdade, sempre ficava no ar aquela sensação de desconfiança de seu interlocutor – o olhar incrédulo acusando: “como você não tem celular?”.

Há uma obrigatoriedade social do uso destes dispositivos – a praticidade de encontrar alguém em qualquer lugar, tornou-o item fundamental de nossas vidas e das relações que estabelecemos com o outro. Diante deste contexto, desenvolvemos um trabalho poético em arte e tecnologia denominado Captas. Captas é uma intervenção artística móvel-urbana, produzida entre 2009 e 2010, em que chamativas capas amarelas começam a tagarelar ruidosamente quando percebem o uso de telefones celulares, em trânsito pela cidade. Essa ação faz uso de performers e capas plásticas constituídas de um sistema eletrônico capaz de disparar conversas pré-gravadas quando percebem o uso de algum telefone celular, através da emissão de radiação eletromagnética. Nosso objetivo, neste projeto, é discutir implicações sociais da telefonia móvel no espaço urbano. Sob este aspecto, o espaço urbano é entendido como um espaço compartilhado, de convivência em “alta velocidade”, gerido, muitas vezes, por regras tácitas de relacionamentos interpessoais.

Estas regras de convivência são violadas diante de limites cada vez mais tênues entre o público e o privado, em situações propiciadas pelas novas tecnologias. No caso específico da tecnologia móvel, nas últimas décadas acompanhamos um aumento explosivo do uso dos telefones celulares, resultando em sua popularização. É provável que poucos usuários da telefonia móvel se lembrem como era comunicar-se no paradigma da imobilidade: como era possível marcar encontros sob o risco da imprevisibilidade? Se a própria imobilidade das metrópoles – o trânsito caótico – nos impede de estar onde desejamos, precisamos nos fazer encontrar para o outro. Nesta hipótese da mobilidade do indivíduo em contraponto a uma cidade imóvel, podemos até pensar em uma obsolescência da telefonia fixa – aquela que utilizamos na intimidade de nossos lares.

O fato é que, com o celular, as pessoas habitam qualquer lugar – naturalmente fazem-se íntimos de outros indivíduos em qualquer ponto em que estejam; a casa deixa de ser o espaço único de sua intimidade. Em lugares públicos compartilham-se sentimentos, idéias ou frases que um estranho jamais ouviria antes do celular. Pessoas choram copiosamente ao telefone, outras berram furiosamente. A mobilidade nos faz construir uma bolha, um lugar projetado como só nosso (e de nosso interlocutor) que é re-habitado a cada nova ligação.

Mas, esta bolha ocupada pelo falante nunca estará somente inscrita no plano físico do espaço. Esta projeção é o seu habitat remoto, que oferece as condições necessárias para que a telepresença em mobilidade se efetive com sucesso. Ora, o telefone, segundo Pierre Lévy[i], é o primeiro meio de telepresença. A voz daquele que fala ao telefone – com suas entonações e pausas – está de fato presente quando seu interlocutor a recebe remotamente. O conceito é fundamental para entendermos uma dimensão de contato que se efetiva a cada conversa: a concomitância de uma presença física e de uma telepresença a um mesmo indivíduo. A telepresença implica em ausência perceptiva. O envolvimento remoto propicia um desligamento da presença física e suas implicações. Ao falarmos ao telefone, esquecemos um pouco de onde estamos ou quem nos rodeia – exceto quando os estímulos locais superam o envolvimento remoto.

Quando a telepresença se efetiva, muitos falantes perdem sua percepção mais apurada dos limites de sua intimidade. Conforma-se, assim, uma ausência circunstancial, onde os falantes descuidam-se e tornam-se inconvenientes: expõem, em voz alta, suas conversas mais íntimas, sem desejarmos ouvi-las; incomodam-nos em locais impróprios como cinemas; obrigam-nos a compartilhar suas opiniões, seus preconceitos ou até mesmo, suas mentiras – quando o paradeiro dito por telefone não confere com o real lugar do falante. Aliás, sabemos bem que em um contato tête-à-tête, ambos interlocutores têm consciência de onde estão e quem os rodeia.

A inserção das tecnologias móveis em espaços urbanos nos oferece uma visão nova ao fenômeno da telepresença: a implicação relacional. Como fica a relação com os desconhecidos que compartilham esse envolvimento? Em diversas situações, perturbam-se aqueles que não estão remotamente envolvidos, os teleausentes. O falante inconveniente ao celular em espaços urbanos priva os presentes do direito tácito de nada saber, da contemplação silenciosa dos lugares, das coisas e das pessoas, do direito de estar imerso em si mesmo.

Em um ímpeto contrário, acreditamos que um modo eficaz de problematizar a questão é interromper o significativo envolvimento propiciado pela distância. É necessário tornar a bolha mais permeável. O falante precisa acostumar-se com a concomitância de ambas as presenças – remota e física – sem sobrepujar uma diante da outra, quando rodeado por outras pessoas. Para pensar nesta questão, nada melhor do que a interferência direta: o ruído comunicacional. As reflexões até aqui colocadas foram inspiradas no projeto artístico Captas, explicitado nas primeiras linhas deste texto. Captas é uma tentativa igualmente invasiva de devolver incômodos conseqüentes da tecnologia móvel. É uma capa ruidosa – chamativa e barulhenta –, que interpela o falante tomando-o de assalto de volta ao espaço dos presentes. Bem, se permanecer telepresente é a regra – ao ponto de que poucos são os indivíduos que não possuem telefones celulares e muitos são aqueles que já possuem mais de um aparelho – esta ação se faz necessária enquanto uma tomada reflexiva e crítica que busca explicitar as implicações das tecnologias móveis no espaço urbano, nas relações humanas e na percepção de seus utilizadores.

Mas, voltando ao amigo do início do texto, eis que uma resolução poética deu fim a todos os olhares desconcertantes: enquanto artista, Edgar Franco criou o projeto Immobile Art – um irônico trabalho de arte e tecnologia que consiste em um aparelho de telefone celular que nunca será atendido, permanecendo ligado e exposto em uma caixa transparente trancada por 10 cadeados. Agora, toda vez que alguém pede o número de seu telefone celular, ele entrega um cartão de visitas com o número do aparelho “imóvel” – sem explicitar a proposta artística – saciando o desejo dos demais falantes.

Immobile Art (2009) de Edgar Franco.


[i] LÉVY, Pierre. Cibercultura. 2ª edição. São Paulo: Editora 34, 1999. p. 81.

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Fabio FON (Fábio Oliveira Nunes): É artista multimídia, atuando entre outras áreas, nos estudos de hipermídia, web arte, arte mídia e poéticas da visualidade. Seus estudos mais importantes são: Web Arte no Brasil, realizado a partir de 1999, e CTRL+ART+DEL: Distúrbios em Arte e Tecnologia, livro publicado pela Editora Perspectiva, em 2010. É Doutor em Artes na Escola de Comunicações e Artes da USP. Site: www.fabiofon.com .

O QUE ESTOU LENDO> Pós-Produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo, Nicolas Bourriaud.

Soraya Braz: É artista multimídia, com bacharelado em artes plásticas (multimídia e intermídia) na Escola de Comunicações e Artes da USP e pesquisadora sobre a produção artística em novos meios, em especial, abordando as relações entre as redes de dispositivos móveis e a radiação eletromagnética.

O QUE ESTOU LENDO> Câmara clara, Roland Barthes.




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