A expansão tecnológica do corpo
…………………………[foto by Vlademir Alexandre]
O designer-artista brasileiro Vinicius Dantas, tem atuado nas relações entre corpo e tecnologia com a realização de obras que explicitam dimensões corpóreas e das possíveis contaminações arte-tecnológicas sobre estes processos. Neste texto, apontaremos algumas reflexões sobre três criações – Quintestigma, Saudades e BafoGanesh – considerando possibilidades de ampliação do corpo pela tecnologia.
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O jovem designer-artista brasileiro Vinicius Dantas, vivendo entre Rio Grande do Norte e Pernambuco, tem atuado nas relações entre corpo, arte e tecnologia com a realização de obras que explicitam dimensões corpóreas e das possíveis contaminações arte-tecnológicas sobre estes processos. Dantas opera sob a herança de Lygia Clark, Marcel-li Antúnez Roca, Stelarc, entre outros artistas. Neste texto, apontaremos algumas reflexões sobre três criações: Saudades, Quintestigma e BafoGanesh.
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1. Corpo e obra
O envolvimento entre o público e obras de arte sempre ocorreu a partir de diferentes aberturas, conforme Plaza (2003) aponta em seu texto “Arte e interatividade: autor-obra-recepção”. Neste artigo, o autor apresenta três diferentes condições para a inserção do público: uma abertura de primeiro grau, considerada interpretativa, quando há condições para que o público “prossiga” a obra através de sua leitura; uma abertura de segundo grau, considerada participativa, onde surge a “percepção como re-criação” e atuação do público manipulando e explorando o objeto artístico; por fim, temos uma abertura de terceiro grau, interativa, baseadas em interfaces tecnológicas e a noção de “programa”, e ainda, que “colocam problemas e novas realidades de ordem perceptiva nas relações virtual/atual”.
Quando falamos de percepção, notadamente estamos nos referindo aos diálogos corporais. Sogabe (2007) traz a figura de um “observador-autor” – o artista enquanto primeiro receptor da obra – com seu corpo a atuar diante de diferentes regimes perceptivos e de produção (Quadro 1). Pouco-a-pouco, o diálogo corporal é mais intenso, partindo da pintura medieval, quando há um espaço sem definição da localização do observador frente a essa paisagem, passando pela multiplicidade de pontos de vista da produção cubista, até a inserção total nas instalações artísticas e no corpo como elemento principal da própria obra, como no caso da performance e da Body art:
Com a Performance e a Body Art todos os outros elementos da obra somem e resta o próprio corpo como elemento principal da obra. Essa relação de maior intimidade corporal do artista com a obra, até confundi-la com o seu próprio corpo, vai ter reflexo na produção de novos públicos que também se relacionarão com a obra de arte de uma forma mais descontraída e lúdica (Sogabe, 2007).
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Quadro 1: O corpo do artista em relação a obra. Fonte: Sogabe, 2007 (adaptação do autor).
Na body art, o corpo é o suporte de expressão e/ou matéria para a produção do artista. O corpo pode ser trabalhado de diferentes formas. No Brasil, podemos destacar as produções de Lygia Clark, ao lidar com a dimensão sensorial do corpo. Clark, juntamente com o também neoconcretista Hélio Oiticica, é frequentemente associada a uma genealogia da interatividade na arte, tendo como obra emblemática a série Bichos, criada nos anos 1960, por propor “alterações estruturais e a variedade temática (social, orgânica, psicológica) para promover atos de liberdade dos espectadores sobre a obra que chama à participação” (Plaza, 2003:15).
Em alguns momentos, Clark trata da reciprocidade sensorial entre corpos. Em O Eu e o Tu: Série Roupa-Corpo-Roupa (1967) propõe que um casal vista indumentárias por ela confeccionadas, em uma exploração mútua e tátil de diferentes materiais presentes na roupa. Por sua vez, em Diálogo: óculos (1968), uma dupla de participantes (ao usarem uma espécie de óculos de mergulho, frente a frente) tem uma percepção fragmentada do outro.
Ainda na body art, podemos destacar a obra do artista catalão Marcel-li Antúnez Roca. Um dos seus trabalhos mais conhecidos é a performance Epizoo, apresentada pela primeira vez em 1994, uma das primeiras iniciativas de controle eletrônico do corpo do performer em cena. O trabalho é baseado em um tipo de exoesqueleto que permite ao público controlar partes do corpo do artista por meio de mouse em um computador. O corpo do artista é envolto por mecanismos que permitem movimentar, estimular e/ou esticar os músculos da face, peitorais, as orelhas, as nádegas. Epizoo reflete certa expressividade grotesca que será recorrente em outras obras de Antúnez Roca, conferindo alguma monstruosidade ao corpo do artista em cena, mas, também é um ponto de partida interessante para pensarmos numa submissão simbólica deste corpo aos dispositivos tecnológicos.
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2. Corpo e tecnologia
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Com a tecnologia, o corpo é visto como potencialmente transformável, desestabilizando cada vez mais a base biológico-anatômica que o define, seu lado material (Donati, 2005: 65). Por outro lado, o corpo pode ser compreendido como uma espécie de mecanismo, não muito diferente do automatismo das máquinas criadas pelo homem, aos olhos da cibernética de Norbert Wiener (1968). Neste sentido é impreterível citarmos o artista australiano Stelarc, conhecido por Third hand, aparato utilizado em performances do artista entre 1980 e 1998, constituído de um braço mecânico anexado ao braço direito do corpo do artista controlado por músculos abdominais. Além de Third hand, o artista realiza outras obras nas quais os limites do corpo são postos a prova ou ampliados por meio de dispositivos tecnológicos. Em resumo, Stelarc defende a obsolescência do corpo diante dos avanços da tecnologia e sua adesão ao ideário cyborg.
A definição de cyborg é baseada na hibridação entre máquina e organismo, que ocorre, segundo Haraway (1994) em Um manifesto para os cyborgs, das imprecisões nas fronteiras entre o humano e o animal, entre o animal humano (organismo) e máquina e entre o físico e o não físico. A figura da criatura cibernética híbrida é sempre recorrente na ficção científica, mas assim surge como um reflexo de nossa realidade social cada vez mais mediada pelas tecnologias.
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3. Quintestigma
O designer-artista Vinicius Dantas, em sua produção em arte tecnológica, tem pensado no corpo como elemento central para poeticamente discutir as relações do mundo com um contexto tecnológico em contínua expansão. O artista, juntamente com o performer Joevan Oliveira, em texto sobre um de seus trabalhos aponta:
Desvelar o modo como os dispositivos/acoplamentos/próteses funcionam num contexto igualmente expandido pelos instrumentos, tecnologias e redes de interação, é refletir sobre corpos emergentes cujos limites traçam a ordem moral e significante do mundo. Ou seja, tratar dessas novas corporeidades é pensar novas maneiras de perceber, agir e se relacionar com o mundo (Oliveira e Dantas, 2013).
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Figura 1: Primeiro teste de Quintestigma de Vinicius Dantas e Joevan Oliveira. Fonte: https://www.behance.net/gallery/22681835/Quintestigma .
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Estas linhas fazem parte da justificativa para a produção do experimento performático Quintestigma (2013) de Vinicius Dantas e Joevan Oliveira, realizado na pequena cidade de São José do Campestre, no estado do Rio Grande do Norte. Os artistas dialogam com a tradição religiosa cristã da região Nordeste do Brasil, partindo de dois elementos corpóreos deste imaginário: o fenômeno da estigmatização, quando pessoas passam a apresentar estigmas, ou seja, feridas ou marcas no corpo correspondentes às chagas sofridas por Jesus Cristo em sua crucificação; a prática dos ex-votos, abreviação de ex-voto suscepto (“o voto realizado”), que são estatuetas, pinturas, objetos ou outros elementos ofertados por fiéis em agradecimento a pedidos atendidos. Do primeiro elemento, o trabalho engendra uma tradução pela tecnologia do corpo sujeito à alteridade. Do segundo elemento, o trabalho se apropria da recorrência de ex-votos como representações do corpo – muitos fiéis agradecem a pedidos de saúde com estatuetas que simbolizam o membro ou órgão beneficiado – para sua interface de ação.
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Figura 2: Teste da estatueta-interface de Quintestigma de Vinicius Dantas e Joevan Oliveira. Fonte: https://www.behance.net/gallery/22681835/Quintestigma .
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Assim, Quintestigma, exibe o corpo do performer à disposição da ação do público por meio de uma estatueta que o representa; há eletrodos espalhados e fixados no corpo do performer, ligados a uma máquina de eletroestimulação, comumente utilizada em sessões de eletroterapia; a localização de botões distribuídos na estatueta se refere à área correspondente no corpo, e quando cada um dos botões é acionado, os grupos de músculos daquela área recebem uma onda de estímulo que acaba por “hackear” o sistema motor do corpo, fazendo-o contorcionar involuntariamente. O visitante tem, assim, controle deste corpo em exibição, como uma espécie de titereiro tecnológico.
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4. Saudades
Dantas, em outra circunstância, operou na dimensão relacional do corpo, em ressonância às já citadas obras de Lygia Clark, concebendo um sistema poético de reciprocidade chamado de Saudades (2014). No domínio tecnológico, podemos nos aproximar de outras criações que operam em uma noção de corpo ampliado pela tecnologia, já que interfaces em redes digitais, como a Internet, possibilitam a ramificação do corpo – ele pode acessar e ser acessado por corpos distantes. Ampliam-se as possibilidades de interface para além do “contato local e real entre os corpos” (Bruno, 2000). Um exemplo é o vestível Hug Shirt, produto desenvolvido desde 2002 por Francesca Rosella e Ryan Genz, e que apresenta a propriedade de transmitir o toque – o abraço – entre pessoas fisicamente distantes. Conforme o usuário toca a camiseta, sensores reconhecem a posição, a pressão e a duração do contato; estes dados capturados são então transmitidos através dos smartphones dos envolvidos, sendo que o outro usuário, fisicamente distante, sentirá vibrações e calor em sua camiseta nos locais onde o primeiro usuário tocou.
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Figura 3: Protótipo de Saudades de Vinicius Dantas. Fonte: https://www.behance.net/gallery/22682699/Saudades .
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Saudades, então, opera no domínio do afeto. Tem como ponto de partida a distância que se estabeleceu entre o artista e seu namorado – entre Brasil e Portugal, separados por um oceano. O título traz uma das mais originais palavras da Língua Portuguesa que soma diferentes sentimentos como amor, falta, perda, tristeza e distância, provavelmente oriunda do sentimento de solidão dos antigos navegadores portugueses e seus entes queridos. Expandir o corpo por meio da tecnologia é aqui o mote: o projeto é constituído para emular a respiração do companheiro de cama fisicamente distante por meio de uma espécie de travesseiro eletrônico. Quando, por exemplo, o artista inspirar e expirar em Natal, seu namorado acompanhará sua respiração em Lisboa, com seu travesseiro pulsando no mesmo ritmo. Trata-se de um possível projeto a ser produzido em série, tal como Hug Shirt, a cumprir um papel profilático contra a solidão dos tempos atuais.
5. BafoGanesh
O papel singular da respiração em Saudades terá como antecedente um projeto há vários anos desenvolvido pelo artista, chamado de BafoGanesh, realizado em colaboração com Felipe Gomes da Silva. Sabemos que a respiração representa a vitalidade deste corpo no qual habitamos, o que a torna uma ação com forte carga simbólica. É também uma ação que nos oferece algum controle, ainda que o ato de respirar seja essencialmente involuntário – pois continuamos a respirar quando estamos desacordados. O corpo reflete seus estados emocionais através da respiração – e podemos pela respiração condicionar nosso ímpeto, por meio de práticas de meditação.
O título do trabalho nos dá mais pistas: além de “Bafo”, que além de nomear o ar que sai pelos pulmões, também intitulou as primeiras experimentações do projeto ainda em 2010, temos também “Ganesh” (Ganesha ou Ganexa, entre outras grafias) que é o nome de um dos mais conhecidos deuses do hinduísmo, considerado uma espécie de protetor, que é representado com quatro braços e uma cabeça de elefante com uma só presa. Seu corpo é humano, ainda que sua cabeça seja a de um elefante. No domínio dos simbolismos, Ganesh expressa a necessidade de alcançar um estado de perfeição, o perfeito equilíbrio de forças.
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Figura 4: O artista Vinicius Dantas com BafoGanesh. Foto: Vlademir Alexandre. Fonte: https://www.behance.net/gallery/22679299/BafoGanesh .
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Então, em BafoGanesh, temos um sistema tecnológico baseado na respiração de seu utilizador. O sistema é composto por sensores digitais capazes de capturar a frequência respiratória e outros dispositivos que traduzem essa frequência em LEDs iluminados, tornando o ritmo da respiração do utilizador visível ao público. Apresenta-se como uma grande tromba de elefante luminosa e tecnológica, que é presa no rosto do artista, como uma máscara. Dantas, então, realiza ações em espaços abertos na cidade convidando o público a respirar em compasso – permitindo que os presentes imerjam juntos em um estado meditativo, em um interessante limiar entre a prática artística e terapêutica, novamente em ressonância com Lygia Clark.
No percurso das três obras até aqui abordadas, Vinicius Dantas atua sobre a ideia de um corpo ampliado pela tecnologia. Este corpo, sobretudo em BafoGanesh, é o do próprio “observador-autor”, o que o torna ao mesmo tempo autor e parte da obra. Além disso, é interessante perceber que está em jogo processos voluntários e involuntários sobre o corpo: a respiração sob controle em BafoGanesh, a respiração involuntária ao adormecer em Saudades e, por fim, o controle dos músculos pelo público em Quintestigma. Isto não é por acaso: além de pensar o corpo como seara de certo automatismo biológico, trata-se de uma metáfora do próprio exercício de controle sobre os processos tecnológicos: o quanto realmente controlamos dos atuais rumos da tecnologia? O quanto de nossa satisfação está no exercício deste possível controle? São questões a aspirarmos.
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Referências
Antúnez Roca, Marcel-li. Site do artista. Disponível em: http://marceliantunez.com/ . Acesso em 15 de maio de 2017.
Bruno, Fernanda (2000). Três linhas de hibridação entre corpo e tecnologia. In: Revista Contratempo, n.4. Niterói: UFF. Disponível em: http://www.contracampo.uff.br/index.php/revista/issue/view/12 . eISSN: 2238-2577. Vol. 1: 75-89. Acesso em 15 de maio de 2017.
Dantas, Vinicius. Perfil no site Behance. Disponível em: https://www.behance.net/viniciusdantas . Acesso em 15 de maio de 2017.
Donati, Luisa Paraguai (2005). O computador como veste-interface: (re)configurando os espaços de atuação . Tese (doutorado em multimeios). Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas. Campinas-SP.
Haraway, Donna (1994). Um manifesto para os cyborgs: ciência, tecnologia e feminismo socialista na década de 80. In: Hollanda, Heloisa Buarque de (org.). Tendências e impasses: feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco. ISBN: 85-32504-77-9.
Oliveira, Joevan; Dantas, Vinicius (2013). Quintestigma – site do projeto. Disponível em: https://quintestigma.wordpress.com . Acesso em 15 de maio de 2017.
Plaza, Julio (2003). Arte e interatividade: autor-obra-recepção. In: ARS – Revista do departamento de Artes Plásticas – ECA/USP Ano1, n° 2. São Paulo, ECA/USP. ISSN: 2178-0447. Vol.1: 09-29.
Sogabe, Milton (2007). O corpo do observador nas artes visuais. In: Anais do 16º Encontro da ANPAP. Florianópolis: UDESC. ISBN 85-98958-04-2
Stelarc. Site do artista. Disponível em: http://stelarc.org/ . Acesso em 15 de maio de 2017.
Wiener, Norbert (1968). Cibernética e sociedade – o uso humano de seres humanos. São Paulo: Cultrix.
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Fabio FON (Fábio Oliveira Nunes) é artista multimídia, atuando entre outras áreas, nos estudos de hipermídia, web arte, arte mídia e poéticas da visualidade. É autor dos livros “CTRL+ART+DEL: Distúrbios em Arte e Tecnologia”, publicado pela Editora Perspectiva em 2010, e “Mentira de artista: arte (e tecnologia) que nos engana para repensarmos o mundo”, premiado no Programa de Ação Cultural de São Paulo em 2016. É mestre em multimeios no Instituto de Artes da UNICAMP, doutor em artes na Escola de Comunicações e Artes da USP e pós-doutor em artes no Instituto de Artes da UNESP. Site pessoal: www.fabiofon.com .
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