Literaturas Leves


.

Escreve-se em parte para imitar quem veio antes, e em parte, também, para se distinguir de quem veio antes.  É a dinâmica óbvia de qualquer atividade humana. Você aprende o que já existia, mas torna-se um potencial introdutor de ruído significante, de anormalidade criativa no sistema, de algo que depois venha a ser assimilado, e passe a fazer parte da forma ou da própria constituição desse sistema. Tudo avança dessa maneira, seja o romance de aventuras serializadas dos anos 1920 ou os projetos de motores de Fórmula Um.

Não se deve confundir literatura com ficção. A ficção (romance, conto, novela, etc.) é uma fatia robusta mas limitada. Cartas, ensaios, sermões, tudo isso é literatura, e tudo isso pode vir a ser Grande Literatura (que é tudo que algumas pessoas admitem que “é literatura”). Basta ser uma demonstração de técnica e inovação explorando ao máximo as possibilidades do gênero, dentro das limitações técnicas, do espírito e das obsessões de cada escritor.  Pode haver mais Grande Literatura numa carta ou num diário íntimo do que em muitos romances.

O conceito varia devagar, mas varia; e varia de país em país, não só ao longo do tempo. Em algumas épocas do passado, e em algumas culturas de hoje, ser literário é ser rebuscado; em outras é o contrário, pela dinâmica natural de contraste.  Gênios de um século já retornaram à obscuridade no próximo e foram resgatados (e vítimas de mal-entendidos cheios de boas intenções) 200 anos depois.

Se os “Sermões” do Padre Vieira e os “Lusíadas” de Camões continuam legíveis hoje é porque foi deles que herdamos grande parte das maneiras de dizer de hoje. Se textos escritos 200 anos depois deles nos parecem ininteligíveis é porque não deixaram influência, não serviram de modelo, não se incorporaram à maneira coletiva de dizer as coisas.

Não é porque estamos escrevendo um texto não-literário que devemos abrir mão da literatura. Os relatórios de prefeito escritos por Graciliano Ramos foram o primeiro sinal de que ele estava trazendo à nossa língua uma maneira pessoal de dizer as coisas, quaisquer coisas, inclusive as mais banais e as mais burocráticas.

Não existe nenhum tipo de texto onde seja impossível instilar Grande Literatura; o que há é que nem sempre isso é desejável, por motivos que o bom senso deve sempre reconhecer. Mas não há literatura leve, ou melhor, ela só o é por opção. Pode-se fazer Grande Literatura numa letra de funk, num anúncio de detergente, num editorial político, num encarte de CD, num trabalho de conclusão de curso, num bilhete pra uma rapariga, numa cantiguinha infantil, num post de rede social. É só querer e ser capaz.

 

 

 

 

 

 

.

Braulio Tavares é escritor e compositor. Estudou cinema na Escola Superior de Cinema da Universidade Católica de Minas Gerais, é Pesquisador de literatura fantástica, compilou a primeira bibliografia do gênero na literatura brasileira, o Fantastic, Fantasy and Science Fiction Literature Catalog (Fundação Biblioteca Nacional, Rio, 1992). Publicou A máquina voadora, em 1994 e A espinha dorsal da memória, em 1996, entre outros. Escreve artigos diários no Jornal da Paraíba: http://jornaldaparaiba.globo.com/ Blog: http://mundofantasmo.blogspot.com/ E-mail:btavares13@terra.com.br




Comentários (1 comentário)

  1. Vinni Corrêa, Braulio Tavares como sempre magnífico.
    11 abril, 2014 as 14:22

Comente o texto


*

Comente tambm via Facebook