Em busca da consistência perdida
A literatura está para a existência assim como a música está para a caos. A função do músico, e a do poeta, é a de instaurar certa ordem no caos. Uma tentativa de ordenação (mesmo que inconsciente; mesmo que errem e gerem novo caos) da realidade caótica da vida, pois tudo já foi pelos ares. O ser humano e suas criações já romperam todos os limites. Como diria o dr. Spok, os limites do universo já foram ultrapassados. Cabe-nos agora reconstruir, fincar novas bases, simular o novo e que ele não seja apenas uma repetição do passado, mas sim, outras possibilidades de futuro.
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Digo uma certa ordem porque a ordem instaurada pela literatura se realiza na obra e é uma entre várias possíveis. Quase sempre, uma ordem particular que por algum mistério inexplicável (apesar de todas as tentativas e ganhos da linguística, da semântica, da pragmática, da análise literária e da literatura comparada) gera uma consonância (ou seria dissonância?) com a época, com o leitor, com as possíveis recepções.
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Uma série harmônica de significados onde os termos, vistos individualmente, não tendem ao zero, ao sunya hindu, ao vazio (e, sim, a um descentramento), e que dispostos de modo peculiar geram uma série infinita de subdivisões, de ondas, de sensações e possíveis apreensões. Uma série que, apesar de harmônica, é divergente. Tal série abarca uma infinidade de polifonias — uma resistência a padrões que se anulam e se estabilizam cristalizando-se em clichês e lugares comuns.
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Na lógica clássica, a consistência é descrita como a propriedade de uma teoria não contraditória, incapaz de coexistir com sua negação. O conceito de consistência para a literatura é algo totalmente diverso. Faz parte de outro escopo, mais próximo da geração de conhecimento postulado por Gaston Bachelard.
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Para ele o conhecimento é sempre a re-forma de uma ilusão levando-se em conta que a “realidade” que importa (especialmente na literatura, digo eu) é a “realidade fantasmática”, não aquela que versa sobre o que existe de fato, mas aquela realidade particular colocada em evidência pela potência manifesta do desejo, da imaginação criativa. As outras realidades (se é que elas existem de fato) é que devem se moldar e se transformar a partir da ordem instaurada pela obra criativa.
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A consistência, então, diferentemente da visão clássica do termo – apreensível em Aristóteles – é o que possibilita o entrelaçamento (característica evidente do texto, do tecido do texto – se me permitem a redundância) dos registros do real, do simbólico e do imaginário em suas mais variadas formas, gêneros e paradoxos.
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Tal ganho não pode ser conquistado sem a fatura da leveza (algo que também aproximo de uma poética do movimento proposto pelo escritor português Gonçalo M. Tavares, a dança, o pensamento e o estilo subtraído de qualquer espírito de peso e gravidade), da exatidão (sim, a linguagem literária deve ser exata e ao mesmo tempo paradoxal) e da multiplicidade — valores literários já identificados por Italo Calvino em suas propostas balizadoras de um novo milênio literário e criativo.
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Calvino quando menciona a rapidez de estilo e de pensamento ou, em outras palavras, a agilidade e a desenvoltura, revela-nos que suas propostas estão imantadas e articuladas pela noção de consistência. Termo que ele não chegou a desenvolver, embora fosse o tema de sua sexta palestra, mas que já podemos perceber em esboço quando diz:
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“O êxito do escritor, tanto em prosa quanto em verso, está na felicidade da expressão verbal, que em alguns casos pode realizar-se por meio de uma fulguração repentina, mas que em regra geral implica uma paciente procura do mot juste, da frase em que todos os elementos são insubstituíveis, do encontro de sons e conceitos que sejam os mais eficazes e densos de significado. Estou convencido de que escrever prosa em nada difere do escrever poesia; em ambos os casos, trata-se da busca de uma expressão necessária, única, densa, concisa, memorável.”
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A palavra, a frase, o parágrafo, a imagem, única, densa, memorável, insubstituível. Se ela não estivesse ali, tijolo semântico da obra em construção, o edifício tornaria-se frágil como um castelo de cartas. Melhor seria dizer, com Roland Barthes, tijolo semântico do texto em construção, pois o texto não deveria ser entendido como algo computável. O texto mantém-se na linguagem e o seu movimento constitutivo é a travessia para além dos gêneros e das classificações formais. Um texto é sempre plural e quanto mais consistente ele for, mais plural ele se revelará.
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Um texto consistente sempre solicita do leitor uma colaboração prática. Ele, o leitor, não pode ser passivo ou mero consumidor. Ele precisa reaprender a jogar. Jogar junto. Exercitar-se como Homo Ludens que é. Ser um agente ativo das possibilidades latentes do texto. Essa característica ficou muito mais evidente, e até essencial, na literatura produzida pelo modernismo e pelo pós-modernismo (se é que essas categorias ainda possuem alguma relevância).
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Antes, em uma perspectiva textual tributária a Aristóteles, a consistência estava relacionada com a existência da coesão e da coerência. Se fossemos buscar a rigorosidade histórica e etimológica, apenas o texto literário harmonioso na composição de seus elementos poderia ser considerado consistente. Ficaria de fora desta categorização didática tudo o que poderíamos chamar de literatura experimental ou de vanguarda (outro termo que uso com receio), justamente aquela que tem nos revelado os melhores frutos da literatura contemporânea – a que explora e problematiza as categorias formais e temáticas convencionais.
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Além disso tudo, há um outro tipo de consistência em literatura que, no limite, confunde-se com a ética. Aquela consistência, já apontada por Arthur Shopenhauer em 1851, que não permite ao escritor escrever sem ter nada a dizer.
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Para Schopenhauer, em seu texto “Sobre o ofício do escritor”, há dois tipos de escritores: os que escrevem por amor, por ter o que dizer e necessitar fazê-lo e os que escrevem por escrever, por amor ao dinheiro ou, em uma leitura contemporânea, as benesses que a escrita possa proporcionar (status, prestígio, fama, lustre no ego, relações, indicações, prêmios etc.).
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O valor de um livro residiria, para ele, na matéria (temática) ou na forma como o tema foi desenvolvido. Mas, salienta, qualquer um com conhecimento técnico da matéria poderia escrever algo relevante. Quando o que importa é a forma (que é o caso da literatura), nota-se que poucos podem oferecer algo digno de ser lido.
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Sabemos que uma das características da literatura dita de qualidade se encontra no estilo. E, para Schopenhauer, “O estilo é a fisionomia do espírito” (a definição mais linda e profunda que já li de estilo). A maneira como a pessoa pensa molda o seu estilo. Mas, ele adverte, “a primeira regra do bom estilo é a de ter algo a dizer”. Um escritor deveria abster-se de querer mostrar mais espírito do que possui. Uau!
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Um outro parâmetro para a consistência na escrita é a levantada por Gabriel Perissé, em seu livro Ler, pensar e escrever. Como o título revela, escrever bem vem depois de ler e de pensar. O esforço necessário para escrever, diz ele, não deve ser usado para escrever bem e sim para a aquisição de força intectual, imaginativa e afetiva que “fará a pessoa capaz de transformar a linguagem de todos, a lingua de um país, o patrimônio verbal comum, em idioma pessoal, em estilo próprio”.
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A mediocrização (um outro nome para a falta de consistência atual) da escrita, e por conseguinte da leitura, é algo que deve ser combatida por todos os envolvidos no processo. Quem sabe possamos levar a sério o que já dizia Schopenhauer ao sugerir, como forma de inibir a literatura de baixa qualidade, que “as revistas literárias deveriam ser um dique contra a escrevinhação inescrupulosa do nosso tempo” e a quantidade crescente de livros esteticamente medíocres e inúteis.
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A busca pela consistência ganha – em tempos pós-utópicos – o nome de resistência. Resistência ao vazio, aos padrões estabelecidos, à temática esperada, à falta de leveza, à mediocrização da literatura e da escrita.
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Edson Cruz (Ilhéus, BA) é poeta, editor e revisor. Desgraduou-se em muitas coisas: Psicologia, Música e Letras. Foi fundador e editor do site de literatura Cronópios (até meados de 2009) e da revista literária Mnemozine (www.cronopios.com.br/mnemozine). É professor no Curso de Criação Literária, da UnicSul/Terracota Editora, no módulo Poema. Lançou em 2007, Sortilégio (poesia), pelo selo Demônio Negro/Annablume e, como organizador, O que é poesia?, pela Confraria do Vento/Calibán. Lançou, também, uma adaptação do épico indiano, Mahâbhârata, pela Paulinas Editora. Em 2011, lançou Sambaqui, livro contemplado pela Bolsa de Criação da Petrobras Cultural. Em janeiro de 2012, finalmente colocou no ar seu novo projeto: MUSA RARA. Escreve com frequência no blog: http://sambaquis.blogspot.com E-mail: sonartes@gmail.com
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