Moçambique – entre história e literatura


 

Se “a história é uma ficção controlada”, como diz Agustina Bessa Luís em uma epígrafe do livro Ualalapi (KHOSA, 1990, p. 15), é necessário que ela vez ou outra seja esgarçada e reavaliada com a liberdade e profundidade que só a literatura parece ser capaz de fazer.

A literatura pode oferecer ao leitor interessado um tipo de contraste que ressalta aspectos camuflados do discurso histórico. Isso se deu também com as narrativas ficcionais dos moçambicanos Ungulani Ba Ka Khosa e João Paulo Borges Coelho, entre outros, mais especificamente a partir dos anos 1990, ao repensarem de forma crítica a ideia de nação e ao se afastarem das concepções de nação tributárias aos movimentos de libertação do jugo colonial português.

Para manter a conexão com a glosa inicial deste texto, vamos nos ater mais a frente ao trabalho do prosador e historiador João Paulo Borges Coelho (que foi premiado em 2022 com o 2º lugar no prêmio Oceanos com seu livro Museu da Revolução. Ungulani (um autor interessantíssimo e publicado por aqui pela editora Kapulana) ficará para outra oportunidade.

Comecemos, então, com um pouco de história.

Entre os séculos 15 e 17, as potências europeias disputavam entre si a expansão e o poderio sobre as regiões exploradas do continente africano. A fim de evitar atritos entre elas, e se chegar a um acordo e oficialização dos domínios, realizou-se a Conferência de Berlim entre 15 de novembro de 1884 e 26 de fevereiro de 1885.

Como se sabe, o acordo entre as potências desprezava totalmente as respectivas culturas, histórias, configurações territoriais e de sociedade dos povos africanos. Portugal foi criticado durante essas negociações e a partir da apresentação de seu “mapa cor-de-rosa”, que buscou a conexão entre as colônias de Angola e Moçambique anexando territórios atualmente configurados como Zâmbia, Malawi e Zimbábue. A intenção de Portugal era facilitar o trânsito comercial entre as terras da costa do Atlântico e do Índico.

Esse embate entre as potências culminou no episódio do “Ultimatum” inglês de 1890 que, por sua vez, aprofundou o sistema colonialista português. As colônias passaram posteriormente a ser consideradas “províncias ultramarinas”. Segundo o antropólogo José Luís Cabaço, abandonou-se

o conceito de “colônia” em benefício de “província do ultramar” e no governo de Lisboa começou a criar raízes a ideia de um “espaço econômico” integrado, com a elaboração, em 1953, do primeiro plano quinquenal. Neste contexto, publicou-se, no ano seguinte, o Estatuto dos Indígenas das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique que deu força jurídica à discriminação e ao regime de exploração intensiva do trabalhador autóctone. (CABAÇO, 2007, p. 314)

O sistema colonial que vigorou, além de discriminar e explorar ao máximo a força de trabalho moçambicano, controlava também várias dimensões do imaginário e da vida dos moçambicanos. Pode-se dizer que, a serviço desse sistema ideológico e de exploração, começa a circular, desde Portugal, uma literatura vinculada à política colonial que se refletia na própria construção das narrativas.

Devemos levar em consideração também o analfabetismo corrente entre os colonizados. A produção literária nas colônias (e em Moçambique não foi diferente) inicialmente foi elaborada por portugueses que estavam a trabalho nas colônias e a serviço da metrópole nos principais centros urbanos.

Aos poucos, surge, como reação e apropriação do que era produzido, narrativas e criações outras que buscavam valorizar aspectos não abordados pela produção colonial, somadas à pesquisa de novas possibilidades estéticas que viessem a representar os anseios emergentes daquele momento histórico. Neste sentido, a literatura brasileira que chegava a Moçambique e Angola se tornou um manancial inspirador para o desenvolvimento dessa nova etapa de produção literária.

De maneira geral, os primeiros textos começaram a aparecer nos periódicos pioneiros de Moçambique: o Boletim do Governo da Província de Moçambique (1854); a Revista Africana (1881), ainda de cunho colonialista. Outros periódicos surgiram como oposição a esses já no início do século 20, como, por exemplo, o jornal O Africano que, mais tarde, foi substituído pelo jornal O Brado Africano.

Outros periódicos foram nascendo e se tornaram instrumentos efetivos para o fomento das ideias e sentimentos anticoloniais, tornando-se um locus de resistência que foi se ajustando ao andar do relógio histórico. A escrita jornalística, em particular, foi a mais utilizada nesse primeiro momento pelos intelectuais moçambicanos para que as ideias pudessem circular e atingir outras colônias também.

Pode-se afirmar que o início dessa produção jornalística e literária já antecipava o processo de independência do país.

A independência de Moçambique só se daria em 1975, após dez anos de guerra entre o exército português e a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique). A política colonial era uma das sustentações do regime salazarista que, com a Revolução dos Cravos, em 1974, chegava ao fim forçando o reconhecimento de Portugal da necessidade de independência de suas colônias. Em 25 de junho de 1975, depois de um governo de transição instalado, Moçambique foi declarado independente.

Em sua tese de doutoramento em Antropologia Social, José Luís Cabaço pontua:

A independência, que marca o fim da “situação colonial”, não representa, de fato, a ruptura radical com a sociedade colonial. Em 26 de junho de 1975, permaneciam no país milhares de colonos, mantendo privilégios e detendo postos chaves da economia e da administração, e continuavam, espalhados pelas províncias, dezenas de milhares de GEs, GEPs, milícias e policiais treinados e organizados pelo colonialismo. A FRELIMO sabia que o fogo das armas já não constituía a fronteira entre a “nossa zona” e a “zona do inimigo”. As variáveis da governação de um país eram infinitamente mais complexas do que a administração de um exército e das “zonas libertadas”. A opção de método foi impositiva: urgia consolidar a correlação de forças que a independência consagrara, condição que então parecia indispensável para evitar a persistência da influência colonial. O Estado, substituindo o carisma da independência pelo autoritarismo do cotidiano, contrapôs-se aos privilégios herdados, a cidadãos urbanos inculturados pelo colonialismo e a setores do poder tradicional, desencadeando reações emocionais e novos processos da identidade por oposição. (CABAÇO, 2007, p. 427)

No ano seguinte, a Renamo (Resistência Nacional Moçambicana) iniciou suas ações com táticas de guerrilha e ataques armados a partir do interior tentando tomar o poder.

A chamada guerra pós-independência durou até 1992, levando Moçambique ao quase colapso e deixando pelo caminho milhões de mortos, refugiados e desterrados. Depois de intensas negociações entre os dois grupos, a Renamo abandonou as armas e se integrou ao Estado com o reconhecimento de seus direitos políticos.

Segundo comenta o professor e crítico moçambicano Francisco Noa (2002, p. 26), no âmbito da literatura, após os conflitos que levaram à libertação, o grande fervor revolucionário iria imantar todas as artes, em particular a literatura, e “fará com que haja uma produção maciça de textos literários” que levará à fundação da Associação de Escritores Moçambicanos (AEMO) em 1982.

A AEMO abraçou e fomentou debates e reflexões importantes, patrocinando também a cadeia de produção literária com a edição de livros de escritores associados. Gestou a importantíssima Revista Charrua (1984) que abrigou autores que vieram a se tornar grandes nomes da literatura moçambicana, como o já citado Ungulani Ba Ka Khosa e também Eduardo White e Luís Carlos Patraquim.

Conforme Jacqueline Kaczorowski e Mariana Fujisawa (orientandos da professora Rita Chaves) sintetizam em artigo,

A chamada “Geração da Charrua” caracterizou-se por promover rupturas com o paradigma do cânone literário combativo, sem negar sua devida importância, mas ambicionando a criação de outras vias para a literatura moçambicana, tais como a lírica preconizada por Mia Couto. (…) De certa maneira, podemos considerar que estas novas obras ocuparam um local de intermédio entre diversas dicotomias sociais e culturais às quais estavam expostos os autores: a luta anticolonial passada e as expectativas frustradas de um futuro; a herança temática e formal da poesia de combate da década de 40 e as novas tendências da literatura mundial; a aquisição de voz própria nacional e o cosmopolitismo; a degradação do socialismo e o início da abertura do mercado; o analfabetismo e a movimentação do mercado editorial interno e externo etc.[1]

Antes de nos aproximarmos mais da obra de João Paulo Borges Coelho, parece-me interessante, apesar de um pouco esquemático, a divisão temporal que a pesquisadora Fátima Mendonça (2011, p. 12) propõe para a literatura moçambicana, a saber: o “protonacionalismo” do início do século 20, tomando força nas décadas de 1930 e 1940; o nacionalismo e o movimento da negritude, que vai até a década de 1960; e o que ela chamou de “tendências variadas pós-independência”, articuladas depois de 1975.

João Paulo Borges Coelho nasceu no Porto em 1955, mas cresceu e viveu até os 18 anos em Moçambique. É professor e pesquisador de História Contemporânea na Universidade Eduardo Mondlane e Professor Visitante do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Sua escrita transita pela história, reescrevendo-a por meio da ficção.

Em 2003, estreou com o romance As duas sombras do rio. No ano seguinte, publica As visitas do Dr. Valdez. Escreveu também Índicos Indícios I e II, em 2005; Crônica da Rua 513.2, em 2006; Campo de Trânsito, 2007; Hunyambaan, 2008. Em 2009, vence o Prêmio Leya com o romance O Olho de Herzog. Em 2011, publica Cidade dos Espelhos; em 2013, Rainhas da Noite; em 2016, Água – novela rural; em 2017, Ponta Gea e, em 2021, Museu da Revolução (prêmio Oceanos 2022).

Segundo a professora Carmen Lucia Tindó Secco, em seu primeiro romance, “a geografia do Zambeze se faz cenário e metáfora da história”. Ela complementa:

A narrativa acumula o tempo mítico-religioso e o tempo histórico, sendo este plural, na medida em que o narrador repensa o passado colonial, embora o palco central seja a região do Zumbo focalizada principalmente no pós-independência, marcada não só por dolorosa guerra civil, mas também por euforias e decepções com a FRELIMO, descontentamentos com sua majoritária administração das elites urbanas do sul do país, em detrimento das populações rurais do Norte. (SECCO, 2021, p. 143)

Para a professora, a partir já da estreia, a história de Moçambique é o pano de fundo de quase todos os romances de Borges Coelho. Ela cita Sheila Khan que diz:

O locus de invenção dos romances de JPBC se reflete no acto de esculpir a realidade histórica de um país com suas águas subterrâneas, com as vidas e trajectórias daqueles indivíduos que deixaram sombras, ecos, transições, humanamente, escritas na paisagem dos ciclos colonial e pós-colonial de Moçambique. (KHAN, 2008, p. 131-145)

Já no romance As visitas do Dr. Valdez, Borges Coelho, a partir de um episódio ocorrido com sua família, busca questionar as interpretações maniqueístas que se faziam às vésperas da independência de Moçambique. Ele mesmo diz em entrevista:

Embora não sendo um livro autobiográfico, o tema foi-me sugerido por um episódio ocorrido dentro da minha própria família. Com ele quis simplesmente contar uma história e, ao mesmo tempo, questionar a interpretação maniqueísta que domina este período das vésperas da independência. Onde tudo costuma ser lido a preto-e-branco, quis introduzir cinzentos, matizes. Ao mesmo tempo, divertiu-me, digamos, experimentar uma técnica de narração fragmentada, uma espécie de puzzle duplo, no tempo e no espaço. Não parto para um livro com uma história feita. Pelo contrário, tinha um episódio muito breve, e a ideia de o explorar com base em questões que me parecem interessantes.[2]

O romance é narrado em terceira pessoa e conta a história de duas famílias: das velhas senhoras, Amélia e Caetana, filhas da mulata Ana Bessa com diferentes estrangeiros e a família de Cosme Paulino e seu filho Vicente. Cada personagem alude aos mecanismos das relações entre as pessoas do povo e os colonizadores. Cosme Paulino e seu filho são criados da família de Amélia e Caetana.

Em artigo de Bernardo Andrade Marçolla (2007, p. 141) encontramos uma síntese dos personagens que estruturam e dão sentido à narrativa:

Sá Caetana e Sá Amélia […] velhas senhoras e patroas que trazem em si a ambiguidade de identidades nada simples, são filhas da mulata Ana Bessa com estrangeiros distintos e já entre si guardam uma relação de semelhança e diferença: são apenas meias-irmãs. Guardam também no corpo e na pele os sinais dessas ambiguidades, que parecem se dissolver apenas na relação que estabelecem com os criados. Assim, Sá Caetana transforma-se, por exemplo, na Grande Senhora. No que se refere aos criados, vemos a transmissão hereditária de um lugar também ambíguo, que significa sobrevivência, mas que também confere algum sentido à vida tal como foi aprendida. Aí nos deparamos com Cosme Paulino, que viveu e morreu sendo fiel a tal lugar, e também seu filho Vicente, herdeiro dessa ‘tradição’ mas que, mesmo em sua fidelidade canina, começa a questionar alguns lugares muito estabelecidos e, subvertendo a ordem, dá lugar a novos arranjos identitários.[3]

A narração é fragmentada e projeta a tensão de um passado estruturado pelas demarcações sociais e um presente que se deteriora pela aproximação da guerra e suas consequências ao círculo dos personagens. As necessidades e demandas da sobrevivência sobressaem e reestruturam todas as relações.

A realidade social, cultural e política de Moçambique saltam na obra que, apesar de ser uma obra de ficção, mostra com grande acuidade a realidade de um momento histórico repleto de contradições e dilemas.

Através do personagem Vicente, encena-se também o processo de conscientização do colonizado de sua identidade, de como herdara do pai a subalternização e as transformações que começam a emergir quando, em um episódio performático, Vicente assume a persona do falecido Dr. Valdez, médico da família.

As transformações anunciam o novo tempo para uma nação moçambicana a se formar a partir da destruição do velho mundo colonizador e das cinzas da guerra.

A epígrafe do poeta latino Persio escolhida por Borges Coelho para abrir o romance sintetiza a força do romance: ex nihilo nihil, nada surge do nada. A transformação e uma possível nova ordem só virão com a consciência e a ação de cada um.

Sem dúvida, é através de Moçambique que Borges Coelho vê e se posiciona no mundo. Isso talvez fique mais claro ainda em seu livro premiado Museu da Revolução que traz Moçambique como protagonista. Mas, como este texto tem que acabar, logo logo retomamos o fio da literatura tecida em Moçambique.

 

 

 

 

 

[1] KACZOROWSKI, Jacqueline; FUJISAWA, Mariana. Literatura e Sociedade em Moçambique: Breve Panorama Histórico. Cadernos Ceru, v. 27, n. 2, dez. 2016. p. 12.

[2] PABLO, Rita. “E através de Moçambique que eu vejo o mundo”: entrevista com João Paulo Borges Coelho. Expresso África. Lisboa, 13 abr. 2006. Disponível em <https://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2006/04/joo_paulo_borge.html>. Acesso em: 19 dez. 2022.

[3] MARÇOLLA, Bernardo Andrade. “Identidade, alteridade e memória em As visitas do Dr. Valdez, de Borges Coelho”. Cadernos CESPUC de Pesquisa. Belo Horizonte, n. 16, p. 141-151, set. 2007.

 

 

 

 

 

BIBLIOGRAFIA

CABAÇO, José Luís de Oliveira. Moçambique: identidades, colonialismo e libertação. Tese de doutorado. Orientador: Kabengele Munanga. São Paulo, USP, 2007.

CHAVES, Rita. Angola e Moçambique: experiência colonial e territórios literários. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.

KHAN, Sheila. “Narrativas, rostos e manifestações do pós-colonialismo moçambicano nos romances de João Paulo Borges Coelho”. Gragoatá, revista do Instituto de Letras da UFF, n. 24, 2008, p. 133-134.

KHOSA, Ungulani Ba Ka. Ualalapi. Lisboa: Editorial Caminho, 1990.

MENDONÇA, Fátima. Literatura moçambicana: as dobras da escrita. Maputo: Ndjira, 2011.

NOA, Francisco. Império, mito e miopia: Moçambique como invenção literária. São Paulo: Kapulana, 2015.

SECCO, Carmen Lúcia Tindó. A magia das letras africanas: Angola e Moçambique. São Paulo: Kapulana, 2021.

 

 

 

 

 

.

.

.

Edson Cruz (Ilhéus, BA) é poeta e editor do site Musa Rara (www.musarara.com.br). Fundou e editou o histórico site de literatura, Cronópios. Estudou Música, Psicologia e, ainda estuda, Letras (USP). Seus textos críticos aparecem no Jornal Rascunho e no site Musa Rara. Tem 6 livros de poesia publicados. Lançou em 2020, Pandemônio(poemas) pela Kotter Editorial e, em 2021, Fibonacci blues – uma novela fractal, pela mesma editora. Em 2022, lançou Negrura, também pela Kotter. Apresenta  o programa CONFRARIA DA PALAVRA na Kotter TV. E-mail: sonartes@gmail.com




Comente o texto


*

Comente tambm via Facebook