O olhar mágico
O universo do escritor Vicente Franz Cecim ainda está para ser desvendado. No início dos anos de 1980, chamaram atenção para sua obra alguns críticos que hoje nos são referenciais. Nomes como Benedito Nunes e Leo Gilson Ribeiro. De Leo Gilson, nosso grande crítico, leitor generoso e onívoro, lemos algo escrito em janeiro de 1981 e que já apontava sabiamente para o colosso que se tornaria a escritura de Cecim.
Cecim iniciara pouco antes, com seus dois primeiros livros, A asa e a serpente e Os animais da terra, uma trajetória literária única e onírica, com suas metáforas plurivalentes e alegorias abrangentes que demonstravam, no dizer de Leo Gilson, um autor com potencial comprovado para se tornar “um mestre da prosa no Brasil”.
Em 1979, a partir de seu primeiro livro, Cecim começa a transfiguração de seu ambiente de nascimento e vivência amazônica (Belém do Pará) para o que, aos poucos, vai se transformando, na sequência de seus livros, em uma região imaginária (Andara), uma grande metáfora da existência que Cecim urde com sua linguagem encantatória — reconfigurando as fronteiras entre a prosa e a poesia — ao abraçar o mundo natural e o que está além dele, ou talvez, aquém a tudo que seja maculado pelas aparências.
Cecim tece desde então seu ambicioso projeto, um mesmo livro/obra que não tem paralelo na literatura brasileira e nem se encaixa nas possíveis categorias e gêneros que a taxonomia literária julga necessário recorrer. O que ele faz é uma alquimia da escritura de intensa força poética, poesia em estado de latência transfigurada, com muitas entradas e nenhuma saída.
Sua escrita não é de fácil leitura e apreensão. Exige disponibilidade de tempo e, principalmente, de espírito. Certa predisposição para se expor a um texto que passeia entre o tratado místico e a parábola, anotados com uma disposição gráfica que flerta com o experimentalismo.
— Ouves, essa Voz em nós, Orino? oÓo?
seu Nome inominável
Ó
Vermelho em nós silenciosamente, ó
Escrevo estas palavras em Manaus, na nossa Amazônia, embebido de suor e umidade, lendo as páginasSSerpentes de Cecim que me conduzem à Semente invisível do visível. É o melhor lugar para lê-lo e entendê-lo. Aqui, parece não haver fronteiras claras entre o que é realidade e o que é sonho. E sentimos isso no corpo, que primeiro definha febril e depois se fortalece exalando só espírito.
O texto de Cecim deixa claro pelo menos uma coisa: a literatura de ficção produzida com a intenção de ser amazônica pecou, com as devidas exceções, pelo paisagismo e pela representação esquemática e retórica da natureza. Não é o caso de Cecim. Sua Andara é a Amazônia “vista com olhos mágicos”, algo da literatura oral da região que nutriu os olhos de seu espírito volante. Espírito imantado por grandes textos filosóficos, místicos e gnósticos de nossa grande tradição literária que ele soube beber e sintetizar na seiva de seu ser.
E os dias passavam indo para parte alguma
Viessem: o anoitecer dos dias, viessem: o amanhecer das noites,
e viessem as nesgas de luz,
nos crepúsculos, as auroras, nas auroras os crepúsculos, e as cintilações que às vezes se dão incendiando mas sem chamas as teias Negras velando os olhos dos cegos
Viessem, voltassem. Como se passassem
Alfabeto humano
Como já indicou o poeta Carlos Nejar, Cecim inventa um alfabeto humano e busca na linguagem “o escuro da semente”. Esta poderia ser a clave fundamental para acessar sua obra, perceber que ela é, antes de tudo, um exercício alquímico de linguagem. Quem semeará Andara? A linguagem. Andara, Asa da Voz. Que Revoada em ti não cessa? A linguagem. Com ela, a revoada não cessa, a escritura não cessa, só a linguagem diz onde cala a literatura.
Ó Escritura que não cessa, só tu falas onde cala a literatura
Que Ave negra assim girando em círculos em ti
Não temer.
Por que eles temem: teus vícios tuas repetições
tudo isso que adeja
e busca enquanto os nossos pés vão indo para a Penumbra, assim em sonhos?
A viagem a Andara não tem fim porque é uma viagem metafísica que, embora feita com palavras, vazios, silêncios e as imagens que este arsenal engendra, só se pode apreender em sua real tessitura quando lemos seus livros todos como uma partitura em coda suspensa caminhando para o abismo.
Ah, Orino,
esses são os livros visíveis de Andaras em que
como fantasmas de Andara podemos nos ver,
mas até de nós se oculta o livro invisível que
esse Vicente não escreve
ah ele sem asas querendo ser alado, mas é só
um homenzinho de nada na Vida, o Vale, pesando sob
a Asa Asa
Mas para ele não é assim. E ele diz
— Tudo vem como sombra do Um e para o
Um volta como sombra
Aqui. Na breve Residência, a vida,
imersos, nesta luz cheia de penumbras em que
somos e não-somos, pois permanecemos sendo lá no
Um enquanto aqui até parece que somos,
as sombras estão no Vários,
e se tornam coisas
Eu te daria a pedrinha branca, ó k, onde escrito
o Nome que Ninguém conhece
Outro procedimento característico de sua escritura é a forma lúdica de narração. Algo que já foi apontado por nosso filósofo-crítico essencial, Benedito Nunes. Sua narração “passa, sem recorrer a elos verbais explícitos, de um plano a outro, pela simples exibição, quase cinematográfica, à maneira de uma sequência de tomadas que se encadeiam por sucessivos cortes”. Sem dúvida, tais procedimentos de escrita, Cecim traz de sua experiência com o cinema. Antes de seus primeiros livros, havia feito em super-8 o ciclo de filmes kinemAndara. Ou seja, Andara já se prenunciava. Nos anos 2000 volta a filmar com seu filho Bruno Cecim, e a partir daí acumula vários títulos e produções. Sua pungente peregrinação até o túmulo de Kafka, que resultou no filme K+afka, nos revela um pouco de sua genealogia, sua “peregrinação álmica”.
O Nome somente o nominável pelo Espanto, ó k
O tropo da viagem, da peregrinação, da travessia, perpassa toda a obra de Cecim: a saída de um espaço encantado em busca de um espaço sagrado. E, durante a travessia, a criação de inúmeros outros mundos cheios de espanto.
A gente tem é saudade de voltar a não ser nada
Com sua criação e peregrinação por Andara, Cecim concebe seu arquétipo mítico e, como um Odisseu moderno, busca voltar para casa e descobre no caminho que nunca saiu dela, nunca saiu de si, do escuro, d’o umanO, da ó Oniausência. O misterioso e maravilhoso da vida espanta (o myoho, como cantam os budistas japoneses, a própria Lei da vida), e é dessa capacidade de se espantar que nasce toda grande poesia e toda a obra de Cecim. Sua escritura, o processo de edificação desta obra — seus livros visíveis e invisíveis — são a atuação de seu Ó Serdespanto em busca incessante.
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K O escuro da semente
Vicente Franz Cecim
LetraSelvagem
384 págs.
O AUTOR
Vicente Franz Cecim nasceu e vive em Belém do Pará, Amazônia brasileira. Em 1979, com A asa e a serpente, iniciou a obra imaginária Viagem a Andara oOlivro invisível, transfiguração da Amazônia em Andara. Em 1980, veio o segundo livro de Andara, Os animais da terra, que recebeu o Prêmio Revelação de Autor da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Em 1981, A noite do Curau, primeira versão do terceiro livro de Andara, Os jardins e a noite, recebeu Menção Especial no Prêmio Plural, no México. Em 1988, Viagem a Andara, reunindo os sete primeiros livros de Andara, recebeu o Grande Prêmio da Crítica da APCA. Em 1995, Cecim publica Silencioso como o paraíso, reunindo mais quatro livros de Andara. Em 2001, publicou em Portugal Ó Serdespanto, com dois novos livros de Andara. Em 2004 relançou, em versões finais, transcriadas, os sete primeiros livros de Andara reunidos nos volumes A asa e a serpente e Terra da sombra e do não. Em 2006, sai a edição brasileira de Ó serdespanto(Bertrand Brasil). Em 2008 e 2014 lançou as novas iconescrituras oÓ: Desnutrir a pedra e Breve é a febre da terra (Prêmio Haroldo Maranhão de romance).
[Texto publicado originalmente na versão impressa do Jornal Rascunho do Paraná]
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Edson Cruz é escritor e editor do portal MUSA RARA (www.musarara.com.br). Graduado em Letras pela USP, publicou quatro livros de poesia, uma adaptação em prosa do clássico indiano Mahâbhârata e um livro de depoimentos sobre o que seria a Poesia. Seu livro Ilhéu (Editora Patuá) foi semifinalista do Prêmio Portugal Telecom 2014. Em 2016, lançou O canto verde das maritacas (poemas, Editora Patuá). E-mail:sonartes@gmail.com
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