‘Um cesto faz-se de muitos fios’
…………………..[Ana Paula Tavares by Ozias Filho]
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Ana Paula Tavares nasceu em 1952, na cidade de Lubango, sudoeste angolano, e foi criada por uma madrinha portuguesa desde os nove meses de idade; madrinha que prezava pelos hábitos e costumes portugueses em casa. Por conseguinte, recebeu uma educação portuguesa e, apesar de só ter deixado a casa da madrinha para se casar, durante a infância e a adolescência chegou a ter algum contato com as etnias locais de seu entorno, principalmente com a tradição de sua avó paterna, os kwanyama, etnia que habita uma zona vizinha de Huíla (região dos povos mwilas). Mais tarde, Paula Tavares[1] buscou conhecer melhor as tradições de sua região por meio de leituras e de suas pesquisas como historiadora e arqueóloga.
A pesquisadora Rosana Baú Rabello, em sua tese de doutorado sobre a poesia e as crônicas de Ana Paula Tavares, comenta sobre sua formação:
As impressões que lhe causaram esse espaço e a própria configuração familiar seguiram ressoando na experiência de Ana Paula Tavares enquanto historiadora, a qual perseguiu algumas referências, históricas e configurações que a colocavam em contato com diferentes tradições, memórias e grupos sociais de sua terra por intermédio de leituras e de projetos de investigação em que trabalhou. Dentre esses projetos que refletem o seu interesse pelas diferentes sociedades que compõem a história angolana, está o livro Africae Monumenta (2002), escrito a quatro mãos com a historiadora Catarina Madeira Santos, o qual reflete a apropriação da escrita em língua portuguesa pelos povos do grupo mbundu. Também há sua tese de doutoramento História e memória, Estudo sobre as sociedades lunda e cokwe de Angola, defendida em 2009, na Universidade Nova de Lisboa.[2]
Todas essas experiências de formação e busca nutriram sua memória pessoal e poética, acrescidas do contexto social de colonização, da guerra pela libertação, das décadas de guerra civil posterior e do seu olhar perspicaz sobre o espaço de subordinação reservado à mulher na sociedade angolana.
Desde seu primeiro livro, Ritos de passagem, de 1985, a poesia de Paula Tavares distingue-se e sobressai em relação ao que estava sendo produzido na literatura angolana. A fatura da literatura angolana, além de não ser pródiga em vozes femininas, pautava-se pela exaltação à resistência, à revolução e à luta.
Segundo a professora Carmen Lucia Tindó Secco,
Desde o primeiro livro, Ritos de passagem, o eu-lírico assume a rebeldia do grito e denuncia práticas autoritárias oriundas tanto dos valores morais lusitanos herdados, como dos preceitos ditados pela tradição angolana. Em relação a esta, por exemplo, critica o alambamento, que prescrevia a troca das noivas por bois ou cereais.[3]
A denúncia se explicita no poema “RAPARIGA”, no qual o eu-lírico se levanta e resiste contra a tradição que cerceia a liberdade das jovens solteiras “destinadas” ao casamento. A primeira estrofe do poema já revela a condição do alambamento e da obrigação das moças apresentarem uma postura ereta com o uso forçado da tábua Eylekessa colocada em suas costas. Esta tradição está diretamente ligada ao padrão de beleza buscada por esta etnia.
RAPARIGA
Cresce comigo o boi com que me vão trocar
Amarraram-me às costas a tábua Eylekessa
Filha de Tembo
organizo o milho
Trago nas pernas as pulseiras pesadas
Dos dias que passaram…
Sou do clã do boi –
Dos meus ancestrais ficou-me a paciência
O sono prorfundo do deserto,
a falta de limite…
Da mistura do boi e da árvore
a efervescência
o desejo
a intranquilidade
a proximidade
do mar
Filha de Huco
Com a sua primeira esposa
Uma vaca sagrada
concedeu-me
o favor das suas tetas úberes.
O eu-lírico confessional assume as dores de todas as meninas oferecidas em casamento a homens que elas não conhecem. Elas crescem junto com o boi, quiçá brincam com ele desejando que não cresça, pois seu crescimento escancara o fim de sua infância e o casamento indesejado que se aproxima.
Nos rituais típicos do sul angolano, além da tábua de correção postural que anuncia estar a moça cedida ao casamento, as pulseiras surgem como símbolo da quantidade de animais que corresponderão à moça. A rapariga é filha de Tembo e filha de Huco, o que representa ser filha do povo, e oferecerá seu corpo e sua juventude em troca da ‘vaca sagrada’ ao lhe ser concedido o “privilégio” de ser a primeira esposa de um homem.
Do ponto de vista formal, nota-se no poema (e em vários outros de sua produção) uma conjugação entre a tradição (temática, oralidade, o uso dos provérbios) e a modernidade (na disposição dos versos na página, a elaboração sintética, e o uso habilidoso dos enjambements (corte dos versos que reconfiguram a sintaxe e amplificam as possibilidades de significação)).
Podemos dizer também que a poesia angolana em geral, foi nutrida pelo diálogo entre o que se denominou de ‘oratura africana’,[4] a herança deixada pelos portugueses e o confronto com as questões históricas e sociais de Angola.
No caso de Paula Tavares, observa-se também a assimilação de procedimentos que são características da melhor poesia moderna. O que apontou, por exemplo, Ezra Pound – uma referência incontornável e mentor de muitos poetas modernos e de vanguarda – ao dizer que a poesia “é a mais condensada forma de expressão verbal”,[5] e que a condensação, ou a síntese, está na própria essência do que seria a poesia e o fazer poético (a poiésis).
Vejamos, como exemplo, o poema sem título do livro Dizes-me coisas amargas como os frutos, de 2001.
CAOS
CACTUS
CACOS
mãos feridas d’espinhos
pousadas pássaros
no meu rosto.[6]
Os três primeiros versos do poema, grafados em caixa alta, gritam e sintetizam em cada verso/palavra a condição vivida pelo eu-lírico, tanto física como existencial e socialmente.
Em meio ao caos social e aos sofrimentos gerados pela guerra, os seres se erguem como cactus, sobrevivendo na aridez dos afetos e revestindo-se de espinhos que, ao mesmo tempo que são armas de defesa, impossibilitam todo contato afetivo.
Difícil não referirmos o poema “O Cacto”[7] de Manuel Bandeira, quando ele diz: Era belo, áspero, intratável. Cacto que lembrava os gestos desesperados da estatuária. Os cactos quase sempre nos lembram um gestual humano, caricato, congelado e desesperado, além de sua beleza intratável, como se fossem espantalhos da dor, ou da morte.
A opção por grafar a palavra em sua raiz latina também não nos parece casual. Reverbera o ‘us’ final da pronúncia das palavras ‘caos’ e ‘cacos’. Além disso, a sonoridade expressiva dos versos se acentua com as sílabas oclusiva velar (/k/) e dental (/t/). O som fica a serviço do sentido, em uma hesitação prolongada, como a definição clássica dada por Paul Valéry[8] sobre o que seria poesia.
A palavra “Cactus” é a síntese do poema, a imagem poderosa e unificadora do poema. Nela estão embutidas, como as ‘palavras-valise’ de James Joyce, o ‘caos’ e os ‘cacos’.
A desordem, a luta pela sobrevivência, os espinhos, e o dilaceramento dos seres e do tempo, desaguam no quarto verso, as mãos feridas d’espinhos. As mãos, símbolos do trabalho e também da manifestação do afeto, apesar de feridas e espinhosas, se oferecem como pássaros no quinto e no sexto verso a acarinhar o rosto do sujeito poético.
Interessante notar a síntese e a multiplicidade sutil de sentido, tão características do engenho da poesia, que o verso pousadas pássaros e como ele foi recortado possibilita.
Ao omitir na frase/verso o advérbio com valor conectivo – pousadas (como) pássaros – o sentido dos três versos conclusivos se expandem. Podem ser lidos como ‘mãos feridas d’espinhos (foram/estão) pousadas’ e, por conta disso, ou mesmo assim, ou independente disso, ‘há pássaros no meu rosto’ (no sentido de que a liberdade do voo, ou a alegria, já se expressam no semblante/ser do eu-lírico).
Também podem ser lidos como ‘as mãos feridas pelos espinhos da vida e do tempo social estão pousadas/pousam com a leveza dos pássaros no meu rosto’, uma expressão profunda de ternura e carinho, apesar de tudo.
Antes que o espaço para esta pequena reflexão se acabe, gostaríamos de comentar um pouco sobre o trabalho de ruminação da memória que se manifesta na poesia de Paula Tavares. A imagem do ‘boi’ é representativa dessa ruminação e se faz recorrente em vários de seus livros.
Como se deu no poema “Rapariga” de seu primeiro livro, também no Dizes-me coisas amargas como os frutos, o eu-lírico invoca a imagem do boi a partir da epígrafe inicial do livro:
Boi, boi,
Boi verdadeiro,
guia minha voz
entre o som e o silêncio
É importante lembrar que o livro mencionado, de 2001, foi gestado ainda sob o impacto da guerra civil que se estendeu na Angola pós-independência até 2002. As tensões, o caos, as angústias, as mortes, a ausência do amado, a dor, reverberam e ruminam em sua memória afetiva em diálogo com uma memória ancestral.
Como diz Carmen Lucia Tindó Secco,
Boi, “boitempo”, “boi da paciência”, metáfora das ruminações da memória. Alegórica imagem de uma história de silêncios, de sons que se perderam através de séculos, pelos planaltos da Huíla e pela areia do deserto vizinho. Ligado também aos ritos da lavoura sagrada, da fecundação da terra, o boi é um dos animais sacrificiais oferecidos aos deuses do panteão religioso dos povos pastores, sendo considerado intercessor entre os vivos e os antepassados. O culto a esses é uma prática comum aos povos bantu de Angola, os quais sempre acreditaram no poder advindo dos mortos, em termos de aconselhamento e de circulação da força vital.[9]
O sujeito poético pede a paciência necessária, a força e capacidade para forjar sua voz em meio à necessidade de erguê-la e a sabedoria para silenciar em uma Angola arrasada pela miséria e pelo sangue derramado.
Além das imagens e metáforas apontadas, inúmeras outras perpassam pela obra de Paula Tavares como símbolos que se repetem: as dunas, lago, barro, teias, terra, frutas, mitos angolanos, etc. Além disso, seus poemas e livros iniciam-se com provérbios (Dizes-me coisas amargas como os frutos, título de um de seus livros, é um provérbio kwanyama), ditos populares, citações bíblicas, num diálogo polissêmico e intertextual constante.
Ao se utilizar das formas fixas da tradição oral, entre os quais os provérbios, Paula Tavares reatualiza-os em constante diálogo entre a memória, o presente e a tradição.
Vejamos alguns exemplos recolhidos em vários de seus livros:
Chorar não chorar
A planície fica na mesma
PROVÉRBIO CABINDA
[Ritos de Passagem, 1985]
…lá onde és amado constrói a tua casa
PROVÉRBIO KWANYAMA
[O lago da lua, 1999]
Amparai-me com perfumes, confortai-me
com maçãs que estou ferida de amor…
CÂNTICO DOS CÂNTICOS
[O lago da lua, 1999]
Dizes-me coisas tão amargas
como os frutos…
KWANYAMA
[2001]
Um cesto faz-se de muitos fios
DITO UMBUNDU
Falar diante de um pau
Mas não diante de gente
DITO NYANEKA
[Manual para amantes desesperados, 2007]
O facto de dormirmos na mesma esteira
Não significa que temos os mesmos sonhos
PROVÉRBIO BURKINABE
[Como veias finas na terra, 2010]
Paula Tavares reencena, com a utilização dos provérbios e ditos, as várias vozes e sentidos que os perpassam num jogo intersemiótico, a meu ver, muito mais rico do que as citações e trechos utilizados como epígrafes em vários contextos literários da tradição ocidental.
Conforme diz o crítico e ensaísta Gilberto Mendonça Telles, as epígrafes são um tipo de discurso paralelo que atuam em dois sentidos: servem de abertura para um texto novo e ao mesmo tempo sinalizam a sua própria procedência “funcionando como elemento de relação do texto com o contexto e sendo, portanto, um dos indicadores culturais da obra”.[10]
Nesse sentido, a articulação que Paula Tavares faz dos provérbios em seus livros me parece mais orgânica e ultrapassam os dois sentidos referidos acima, como se ela ruminasse o tempo e a memória reconfigurando e reordenando o caos do momento presente e, ao extrapolar a linguagem escrita dando voz ao provérbio, criando uma alquimia própria.
O poeta e professor angolano Abreu Paxe estudou os provérbios em seu doutoramento e nos ajuda a compreender a complexidade que está em jogo nos provérbios. Ele anota:
[…] o provérbio constrói estruturas relacionais que nos levam a compreendê-lo deste modo: uma série da cultura em que as fronteiras entre o que é escrito e o que é visualidade são elididas. Nisso emerge o jogo entre o que se grafa em papel, o que se grava na madeira ou o que se pinta na pedra. Vemos aí o que se traz e o que se apresenta à busca de um entendimento dos processos de “recriação” nos tráfegos do provérbio que nos faz deslocar, não apenas para entender as poéticas deste, as fronteiras que apagam as diferenças entre o escrito e o visual, ou o oral, mas para perceber modos de saberes da criação popular, ligando o conhecimento do narrativo aos aspectos da apreensão concentrada de determinados universos da comunicação. Aliás, estão em causa fenômenos da natureza e fenômenos culturais, como também sua transmissão.[11]
Vale citar mais uma vez Carmen Lucia Tindó Secco, agora em seu posfácio à poesia reunida de Paula Tavares:
Dominando o fogo sagrado de conhecimentos universais e a chama de oferendas das tradições locais, o sujeito lírico dos poemas de Paula ora se assume como histor, tecendo fios de estórias e da História, ora se apresenta como aedo, tramando novelos de lã e labirintos de seda, metáforas da teia textual em que se converte a poesia da autora, uma poesia carregada de epos, na medida em que traz, por entre os veios intimistas dos desejos e sentidos, uma trama coletiva de recitações procedentes tanto de tradições orais da sua terra e de seus livros anteriores, como de sua bagagem artístico-cultural e de suas leituras de outros poetas não só africanos, mas de outras partes do mundo.[12]
Não vamos ter tempo nem espaço aqui para detalhar a síntese semiótica que se dá nessa intercalação dos provérbios com os poemas específicos.de Paula Tavares. No entanto, não poderia deixar de chamar atenção para esse possível veio de análise.
O que a poesia de Paula Tavares forja ao se utilizar desses recursos da tradição oral é a possibilidade de organização de seu mundovisão (se me permite o neologismo), como faziam os antigos griots em suas narrativas, e ao mesmo tempo a fusão dos signos da modernidade e da tradição tornando-os, com a fatura de seus textos, a chama potente de uma poesia que ultrapassa o presente histórico e as referências conectadas a ele.
Para concluir o texto que já se estende, devemos registrar que as motivações poéticas de Paula Tavares se ampliaram desde seu primeiro livro, mas sua poiésis já se revelava complexa, atual, e com uma força estética surpreendente em sua trama coletiva de vozes.
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[1] Ana Paula Tavares assina o nome por extenso em seus três livros de prosa; nos livros de poemas, que são nosso interesse neste trabalho, assina apenas Paula Tavares.
[2] RABELLO, Rosana Baú. Entre textos e contextos: a poesia e a crônica de Ana Paula Tavares. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Orientadora Rejane Vecchia da Rocha e Silva. São Paulo, 2019.
[3] SECCO, Carmen Lucia Tindó. A magia das letras africanas: Angola e Moçambique. São Paulo: Kapulana, 2021.
[4] Termo cunhado por volta de 1970 pelo linguista ugandense, Pio Zirimu, como rejeição ao que o Ocidente chama de literatura ou narrativa oral. Sua ideia era apontar para um sistema oral estético que não precisasse validar-se a partir da literatura. Esse tema merece estudo e pesquisa mais extensiva.
[5] POUND, Ezra. ABC da literatura. São Paulo: Cultrix, 2006. p. 41.
[6] TAVARES, Paula. Amargos como os frutos: poesia reuOnida. Rio de Janeiro: Pallas, 2011. p. 131.
[7] BANDEIRA, Manuel. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Cia. José Aguilar, 1967. p. 246.
[8] “Hesitação prolongada entre o som e o sentido”: citação atribuída a Paul Valéry que reverbera de forma lapidar as discussões de seus dois importantes textos publicados em Variété: “Primeira aula do curso de poética” e “Poesia e pensamento abstrato” (Valéry, 1957, p. 1314 -1359).
[9] SECCO, Carmen Lucia Tindó. A magia das letras africanas: Angola e Moçambique. São Paulo: Kapulana, 2021. p. 211-212.
[10] TELES, Gilberto Mendonça. Os limites da intertextualidade. In: A retória do silêncio – teoria e prática do texto literário. São Paulo: Cultrix, 1979. p. 21-37.
[11] PAXE, Abreu Castelo Vieira dos. A migração fractal do provérbio: práticas, sujeitos e narrativas entrelaçadas. [Tese] Doutorado em Comunicação e Semiótica, PUC, 2016.
[12] SECCO, Carmen Lucia Tindó. Posfácio a Amargos como os frutos: poesia reuOnida. Rio de Janeiro: Pallas, 2011. p. 279.
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Texto publicado originalmente no Jornal Rascunho.
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Edson Cruz (Ilhéus, BA) é poeta e editor do site Musa Rara (www.musarara.com.br). Fundou e editou o histórico site de literatura, Cronópios. Estudou Música, Psicologia e, ainda estuda, Letras (USP). Seus textos críticos aparecem no Jornal Rascunho e no site Musa Rara. Lançou em 2020, Pandemônio (poemas) pela Kotter Editorial e, em 2021, Fibonacci blues – uma novela fractal, pela mesma editora. Apresenta todos os sábados o programa CONFRARIA DA PALAVRA na Kotter TV. E-mail: sonartes@gmail.com
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