Poeta da luminosidade
A língua grega continua mapeando nosso território mental. Pelo menos os hemisférios do cérebro ocidental e a etimologia de inúmeras palavras que utilizamos para denominar as coisas. Antologia é uma delas. É o mesmo que florilégio e significa “ação de colher flores”. De coleção de flores escolhidas, o termo derivou para coleção de textos em prosa e/ou verso. Uma prática, no âmbito de nossa história literária, de cunho bem parnasiano. A começar pela associação de poemas a flores.
Adriano Espínola reuniu suas flores na antologia Escritos ao sol — uma seleta de 30 anos de poesia. A antologia entrega-nos 99 poemas, dos quais dez são inéditos, compilados de seus livros Praia provisória (2006), Beira-sol (1997), Trapézio (1985) e Táxi (1986). Uma trajetória solar e ensolarada que nos brinda com uma exuberante fatura poética. O poeta cearense soube dialogar de forma exemplar com a tradição e harmonizá-la com as novas propostas da poesia contemporânea.
Em sua obra, Espínola circula com desenvoltura entre as formas fixas, os versos livres e longos, e até com a síntese imagética dos haicais. Percebe-se também que ele passeou e bebeu sem medo de várias poéticas — a concretista, a poesia marginal, as líricas da poesia em língua portuguesa e inglesa. Tudo isso permeado por um diálogo informado e intertextual com grandes escritores, por exemplo, Borges, Ginsberg, Whitman, Dante, Vieira, Ovídio, Homero, Jorge de Lima, Gregório de Matos, João Cabral e Sousândrade. Uma erudição posta a serviço de uma musical oralidade e sedutora dicção.
Toda palavra é um rio
Distante
que desemboca
neste instante
na minha voz.
[…]
Revelar a própria voz no emaranhado de influências do tecido poético é a busca e o desafio de todo poeta. Ele só sobressai do bulício de projetos poéticos despejados no mercado literário quando a encontra. Nesse instante o sol se sobrepõe ao brilho tímido e inconstante do tatibitate que costuma pontuar o céu estrelado das poéticas contemporâneas.
Seu antológico poema TÁXI ou poema de amor passageiro é um dos mais belos exemplos de feliz incorporação da influência beatnik na literatura brasileira. Nele ecoa Kerouac, Ginsberg e mesmo Walt Whitman, inserindo Espínola e o Ceará nas freeways incontornáveis da poesia mundial. Pegamos carona em seu táxi e viajamos por entre as ruas subitamente alargadas do instante mapeadas por sua memória e geografia afetiva. Espínola consegue ser universal fotografando sua mítica aldeia e conectando-a com Nova York e o mundo.
[…]
O taxímetro marcando alucinado o preço da eternidade.
— Na contramão, sempre.
Atravessar todos os sinais.
Provocar todas as batidas e todos os atropelamentos fatais,
para que eu possa sentir pena dos corpos arrebentados,
[…]
Eiá, jogar o táxi por cima dos pivetes nos cruzamentos,
limpando os vidros dos carros parados e a merda
da indiferença alheia.
A sequência de poemas Os hóspedes, extraídos de seu livro Praia provisória, destilam uma logopeia de alta estirpe em diálogo com as imagens da mitologia grega, com os tristes cantos de alívio de Ovídio, com os seres e temas que se hospedam em nossas vozes. Os limites do “eu” e do “outro”, do tempo transcorrido e existenciado são todos problematizados. Não sabemos se mudamos constantemente para nos tornarmos sempre o mesmo. No fim das contas, o poeta com seus paradoxos nos revela que estamos todos exilados no ponto/ mais extremo da língua, no ocaso eterno de nossa existência.
Quíron
Metade de mim é o que não foi.
A outra metade, o que poderia ter sido.
Entre as duas, sou-sendo (suponho)
aquilo que sobrou, ferido: o sonho
do dia presente, feito luz e sombra
e carne e agonia — inteiro, no poente.
Os poemas Mariposas e Meio-dia 2 flertam com uma disposição gráfica arrojada como alguns dos poemas de e. e. cummings que se realizam, ou se atualizam, com cortes abruptos, expressões parentéticas, como uma montagem que torna o poema legível em mais de um sentido e faz saltar significados na atomização de vários vocábulos ou versos.
Algo parecido se dá com o espelhamento criado por Espínola no poema Os mortos que amplifica a leitura e as possibilidades de sentidos. A ênfase na forma visual direciona a uma leitura espacial do texto.
Sabemos que nossos olhos funcionam como uma espécie de scanner que vai arquivando certas porções de texto antes mesmo de sua leitura. Ao ler, procedemos simultaneamente uma operação que vai englobando um conjunto de palavras, outra que refaz a linearidade sequencial do texto. Do ponto de vista semântico, a leitura se realiza no tempo por meio das diferenças e oposições que serão estabelecidas entre as unidades que compõem o discurso poético (do fonema à oração e ao verso). Essas diferenças se atualizam de acordo com uma relação entre o sintagma (frase, verso) e o paradigma (o dicionário virtual da língua e nosso dicionário afetivo existencial).
No caso do poema em questão tudo isso se embaralha porque as estrofes são colocadas lado a lado e os versos, diferenciados pela tipologia em redondo e em itálico, são cortados em precisos enjambements. O agora registra o vaivém do passado e do devir nas vozes velozes dos mortos que nos chegam como ondas movidas pelos ventos.
Os mortos
o agora à noite
avança os mortos
ao sopro são
azul dos navegantes
mortos velozes
vem vão
do mar ao vento
o devir no mar
dos singrando
dias as próprias
remotos vozes
Podemos notar o domínio que Espínola tem do soneto ao ler o poema A serpente. Realizado no cânone clássico, na formatação fixada por Camões, apresenta os versos decassílabos com rimas abraçadas nos quartetos (ABBA/ABBA) e cruzadas nos tercetos (CDC/DCD).
O mistério da noite que sibilina se enrodilha no poente e que tem seu movimento sinuoso explicitado nas rimas cruzadas dos tercetos finais do soneto.
Um poeta é sempre um equilibrista. Equilibra-se entre a forma e o sentido, o som e o significado, o máximo dizer e o mínimo escrever. Nos poemas recolhidos do livro Trapézio, Espínola revela-nos seus exercícios mínimos e concentrados do haicai.
Sabemos que o haicai japonês é um poema breve, objetivo, que tem como centro um fenômeno ligado à sucessão das estações do ano. Em termos de forma, é composto por 17 durações (e não sílabas) divididas usualmente em duas frases, que provocam uma contraposição entre o que é passageiro e o que é duradouro, o que é humano e o que é cósmico.
Com a assimilação do haicai nos idiomas do ocidente, a noção de duração foi substituída pela sílaba, o tema da estação, as palavras representativas da estação, a busca pela iluminação zen desapareceram e ele tornou-se um pequeno poema com três versos: o primeiro e o terceiro com cinco sílabas poéticas e o segundo, com sete.
Nos haicais de Espínola, a imagem inicial que remete à natureza ou ao ser está lá. A faísca poética, também. A revelação, a intuição, a ausência de metáfora, a fotografia do instante em três tempos.
O sol despertado.
Um galo tenta bicá-lo —
o canto rosado.
A leitura atenta dos poemas de Espínola revela-nos uma ampla humanidade afinada ao famosíssimo verso de Terêncio: “Nada do que é humano me é estranho”. No entanto, o poeta lança sobre os seres e as coisas um olhar de quem anseia o sol e a claridade.
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Adriano Espínola nasceu em Fortaleza (CE), em 1952. Professor de literatura da UFC, também lecionou na Université Stendhal Grenoble III e na UFRJ. É autor de seis livros de poesia, além de ensaios importantes sobre Gregório de Matos e Sousândrade. Táxi foi traduzido para o inglês por Charles A. Perrone e publicado pela Garland Publishing (1992), na coleção World Literature in Translation.
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[Resenha publicada na edição de janeiro do Jornal Rascunho]
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Edson Cruz é escritor e editor do portal MUSA RARA (www.musarara.com.br). Graduado em Letras pela USP, publicou três livros de poesia, uma adaptação em prosa do clássico indianoMahâbhârata e um livro de depoimentos sobre o que seria a Poesia. Seu poemário mais recente, Ilhéu (Editora Patuá), foi semifinalista do Prêmio Portugal Telecom 2014. E-mail:sonartes@gmail.com
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