Diálogo além dos centros
WILMAR SILVA ENTREVISTA JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO
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Wilmar Silva, autor de “Z a zero”, provoca um diálogo com José Inácio Vieira de Melo, um dos autores mais originais da atualidade, nascido no Nordeste profundo, vindo de um Brasil colorido de contrastes, onde a poesia se revela através de uma lírica eivada de verdade. Lírica que coloca em questão a poesia contemporânea brasileira, em questão porque é necessário se abrir a experiências de linguagem além dos centros, centros que devem também ser ocupados pelas margens que o definem. José Inácio Vieira de Melo, autor de “Pedra Só”, de repente, na cantaria do verbo.
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WILMAR SILVA
Sendo um Caeté de origem, por que romper com o umbigo e partir a caminho da Bahia de todos os demônios?
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JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO
Porque o mundo foi feito pra gente andar. E a Bahia é tão aconchegante, tão mãe, tão fêmea. Ter vivido na cidade de Maracás e na fazenda Cerca de Pedra por uma década foi uma experiência ímpar. Em Maracás, eu vivia num processo de embriaguez constante. Ainda assim aproveitei muito da beleza da cidade das flores e dos encantos das suas filhas. Na roça, o fascínio das estrelas; as leituras, alumiado por candeeiro; a companhia do fascinante vaqueiro Damião Tavares Neto, com quem tangi muito gado pelos varedos da caatinga. Oito anos em Salvador abriram-me vários caminhos: fiz graduação em jornalismo e, principalmente, tive a compreensão da importância da poesia em minha vida. Conheci ‘todos’ os poetas da Bahia, conheci poetas de todas as partes do Brasil. Publiquei livros. Coordenei projetos. Passeei pelas ruas e becos da velha São Salvador, de mãos dadas com meu filho Moisés. Nossa, que experiência linda! Como diria Gilberto Gil, a Bahia me deu régua e compasso. Atualmente divido meu tempo entre Jequié, a Fazenda Pedra Só e os vários cantos e recantos do Brasil. Outro dia estava com você, Wilmar Silva, em Belo Horizonte, recitando poesia no projeto Terças Poéticas. Há quinze dias estava na Festa Literária de Boqueirão (Flibo), no Cariri paraibano e na cidade de Campina Grande, soltando meus versos para aquela gente forte e hospitaleira da Paraíba. No próximo final de semana, 13 e 14 de abril, estarei nas cidades de Maracás e Planaltino, no Vale do Jiquiriçá, para a estreia da edição de 2012 dos projetos Uma Prosa Sobre Versos e Palavra de Poeta, dos quais sou curador. E vou inventando meus passos…
WS
Se a poesia não serve para nada, por que aquelas noites entre coivaras vendo a queda das estrelas?
JIVM
Já afirmei que a poesia não serve para nada. Mas sou contraditório. Agora, sinto que a poesia, esta praga sagrada, é minha cruz e salvação. A poesia é aquelas noites, é a chama daquelas coivaras e é também os bilhões de estrelas. Eu leio o mundo através da poesia.
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WS
O que significa ser poeta no terceiro milênio depois da Semana de Arte Moderna, das Poesias Concreta e Marginal?
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JIVM
Significa o que significa. Não sinto que os questionamentos e avanços de linguagem desses movimentos tenham esgotado as possibilidades da poesia. Ao contrário, creio que ampliaram o leque de possibilidades. E cada qual, no seu tempo e espaço, movimenta-se do jeito que pode. Eu faço poesia por uma questão de sobrevivência, por uma necessidade premente. O resto é café pequeno.
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WS
“A Terceira Romaria” apreende uma poética em estado de infância, ou a infância é um inferno perdido na memória?
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JIVM
Meu amigo Mayrant Gallo tem um poema que diz assim “Cheguei ontem de muitos lugares./ Mas nenhum enfim que fosse melhor/ Que a infância.” A minha infância teve momentos extraordinários. Outros nem tanto. “A Terceira Romaria” é a peregrinação da criança pelo Sertão cósmico, repleto de encantos e de magia, povoado por vaqueiros míticos, por velhos místicos e por almas penadas. Ainda hoje zunem na amplidão do meu ser o som dos rodeiros dos carros de bois e os aboios dos vaqueiros – resplandecentes, vibrantes. “A Terceira Romaria” é o caminho que leva para “A Infância do Centauro”.
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WS
“Roseiral” é a antropofagia de José Inácio Vieira de Melo ou a invenção de um Duíno Selvagem?
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JIVM
“Roseiral” é o soluço que sai da casa do medo cheio de coragem. As pétalas do meu “Roseiral” são as pedras da transmutação. E não facilite não, pois nem você, poeta do “Silvaredo”, está livre de receber uma pedrada perfumada de metáforas. Quem inventou o Duíno Selvagem foi você. E eu gostei.
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WS
Para Ezra Pound poesia não é literatura e para Novalis poesia é religião, e para José Inácio Vieira de Melo o que não é poesia?
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JIVM
Até o nada é poesia, portanto tudo é poesia. Principalmente o que não existe. É no que não existe, onde o pensamento não sonha ir, lugar que fica pra lá do nascimento das estrelas, é nesse espaço que tenho feito minhas peregrinações em busca da poesia. Às vezes, volto com o matulão prenhe de versos; noutras, perplexo e vazio. Aí, olho ao lado, e lá está a poesia, bem no terreiro da minha infância. A poesia é a minha religião, a minha bênção, a minha loucura.
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WS
O poema é escrito quando é escrito ou o poema nasce antes de ser pensamento?
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JIVM
Em mim, o poema nasce de um relampejo. Às vezes, é toda uma possessão e brota em estado de mediunidade. Mas, na maioria, vem um sopro ou uma tempestade lírica, e o resto é tempo e trabalho. Há momentos em que o sujeito passa horas diante de um verso e sente que há algo sobrando, mas não consegue enxergar onde está o excesso. Dias ou semanas ou meses depois é que vem à tona o caroço de feijão estragado.
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WS
Se Gregório de Matos e Guerra estivesse vivo o que ele escreveria sobre a Bahia e sua boca do inferno?
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JIVM
Continuaria cuspindo seus versos de fogo. A Bahia, como todo lugar, tem um panelão de medíocres arrotando genialidade, submersos na gordura da inveja. São cães e cadelas desbocados que ladram, ladram, ladram. Mas, coitados, são desdentados.
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WS
Ferreira Gullar introduziu na poesia a palavra “diarréia” e você, José Inácio Vieira de Melo, por que a sílaba “cu”?
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JIVM
Rapaz, Gregório de Mattos, Ferreira Gullar, Ildásio Tavares e tantos outros mostraram o cu (na poesia). Eu apenas falo do “cu de tua irmã”. E existe uma palavra mais resolvida, mais aberta e mais doce, apesar do fel que encerra, do que a palavra cu?
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WS
Fosse viver “Une Saison en Enfern” que poetas você colocaria no pau-de-arara de viagem à Pedra Só?
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JIVM
Não levaria fantasmas. Levaria poetas vivos e vivazes, dispostos a rasgar os peitos, a derreter a gordura na inclemência do sol da caatinga. Esses eu levaria de bom grado. As outras coisas que vem junto, nessa travessia, meu amigo, não há ouro que pague: invadir o vento num galope, sentir um carinho morno ao derredor de uma fogueira, ver as centelhas se transmudarem em estrelas, e beber o mel das estrelas e o mel das abelhas e das musas, e ouvir o canto do espanta-boiada e voar nas asas do espanta-boiada. Pois bem, para essa estação, escalaria Elizeu Moreira Paranaguá, Mariana Ianelli, Roberval Pereyr, Alexandre Bonafim, Kátia Borges, Vitor Nascimento Sá, Bruno Gaudêncio, Cleberton Santos, Iracema Macedo, Antonio-Mariano e, claro, Wilmar Silva, o Cavaleiro da Queda Anunciada. Eis a minha seleção.
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WS
Sempre em busca de diálogos entre a Bahia e o Brasil, o que existe de relevância na Roma Negra de agora?
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JIVM
Bons poetas estão em atividade, produzindo e mostrando seus versos. Os baianos que citei na resposta anterior e outros, também com o trabalho reconhecido, como é o caso de Luís Antonio Cajazeira Ramos, Mayrant Gallo, Narlan Matos e Rita Santana, e outros que estão estreando e que muito prometem. Entre esses Georgio Rios, Martha Galrão, Ricardo Thadeu, Priscila Fernandes, Daniel Farias, Lívia Natália e vários outros. São vozes entre vozes, mas que se destacam do coro. E outras tantas vozes sonantes e dissonantes.
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WS
O fato de ser um poeta de aboio abre ou fecha doors ou dores frente ao Brasil Sudeste?
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JIVM
Cara, o Brasil Sudeste é que está trancafiado. O Brasil Sudeste é que está preso e as paredes são de espelhos. O Brasil Sudeste não conhece o Brasil e mal se conhece, apesar de viver em função do próprio umbigo. Não preciso do aval do que você chama de Brasil Sudeste, essa invenção abobalhada. Preciso da poesia de Carlos Drummond e Murilo Mendes, de Mário de Andrade e de Dora Ferreira da Silva, de Cecília Meireles e de Vinícius de Moraes, que, ao contrário de criar barreiras, rompe-as. E mais, as doors que estiverem fechadas no meu caminho, eu mesmo abro. O meu aboio é da estirpe de Jorge de Lima, Gerardo Mello Mourão, João Cabral, Patativa do Assaré, Florisvaldo Mattos, Francisco Carvalho, José Chagas e Alberto da Cunha Melo. O meu aboio é livre.
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WS
Como escrever um poema enquanto um menino vende balas nos sinais do Brasil de mentiras?
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JIVM
Como não escrever um poema enquanto um menino vende balas nos sinais do Brasil de mentiras? Por que não escrever um poema enquanto um menino vende balas nos sinais do Brasil de mentiras? O poema pode ser uma mentira que fale as verdades desse Brasil de mentiras. O poema pode dar nome às balas que tiram vidas de meninos. O poema pode instaurar uma nova ordem onde os meninos chupem balas e decifrem os sinais da dignidade. O poema pode.
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WS
A língua que se fala no Brasil é o mesmo idioma que se vive nas caatingas?
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JIVM
Seu moço, como ensinava o mestre Rosa, o Sertão é o mundo. E eu lhe digo, o Brasil é um caatingão onde todos falam a mesma língua. Algumas gentes de meia dúzia de metrópoles é que não falam a língua do Brasil.
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WS
Além de “Concerto Lírico a Quinze Vozes”, existe mais Sangue Novo na Bahia?
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JIVM
É o que mais tem. Basta ver a força de Janara Soares, Nívia Maria Vasconcellos, Vânia Melo, Érica Azevedo, Clarissa Macedo, Raiça Bomfim e Gabriela Lopes. E tantas outras e outros.
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WS
“Eu vou me vestir de índio para tirar teu escalpo”, José Inácio, a que se deve a miséria no Brasil?
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JIVM
À ignorância, ou seja, à falta de compreensão. Compreender não é apenas tomar conhecimento de. Compreender é ter consciência das coisas, sobretudo dos deveres e direitos. Só existe ignorância onde não há compreensão. E o principal caminho para se chegar à compreensão é através da educação.
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WS
Eu não acredito em eu lírico e não suporto epígrafes. Como falar do sertão aos quarenta anos?
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JIVM
Eu acredito em eu lírico e não tenho nada contra as epígrafes. O Sertão é o Tao do Ser. Ao entrar na casa dos quarenta, com dois filhos e muitas responsabilidades, o Sertão ganha outra dimensão. E é preciso viver o sertão interior e levar os meninos para viverem o Sertão, para que eles descubram o seu sertão. O que mais fazer se não falar do Sertão?
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WS
Se não basta a língua em estado de dicionário, o que é a sintaxe para José Inácio Vieira de Melo?
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JIVM
A sintaxe é, quando, no outono, as folhas secas caem até formar um colchão, onde eu e minha amada vamos nos deitar e inventar a poesia do nosso gozo para a árvore que nos acolhe e para o Cosmo que nos assiste.
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WS
A humanidade é mesmo um fracasso ou somos a beleza de que fala Walt Whitman?
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JIVM
Manoel de Barros disse que Beethoven é um erro perfeito de Deus. Não acredito em perfeição, mas que somos um erro de Deus. E que erro! Por isso erramos pelo mundo, criando sentidos para a nossa existência órfã. Sim, essa consciência de finitude arrasa com a gente! Mas, condenados a assistir o declínio dos nossos entes queridos e a arrastar a nossa pedra tumular, dia após dia, ainda assim somos capazes de atos beleza, somos capazes de amar. E como não ficar admirado e feliz ao ouvir a música que o surdo Beethoven fez. Como não ficar encantado com a poesia e com os contos de Jorge Luis Borges, o cego. E Charles Chaplin? E Luis Gonzaga? E Gandhi? E Whitman? E Cristo? E tu? E eu? E nós?
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WS
E você, José Inácio Vieira de Melo, transaria com Jesus Cristo para herdar o paraíso?
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JIVM
Minha transa com Jesus Cristo acontece de outra forma: através da poesia, que é a minha religião. Jesus é a Estrela do Oriente, ocupa um lugar de destaque dentro do meu sentimento. Ele é meu Mestre. Na minha vida, não faço outra coisa que não seja cumprir a missão que ele me ofereceu: levar a palavra poética para os povos, pelo mundo afora. Sou herdeiro natural do Paraíso.
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Wilmar Silva de Andrade, Rio Paranaíba, Minas Gerais, Brasil, 30/04/1965. Poeta, performer, editor, curador, artista visual e sonoro. Ensaísta/criador/curador do projeto de pesquisa de poesia de línguas neolatinas PORTUGUESIA MINAS ENTRE OS POVOS DA MESMA LÍNGUA, ANTROPOLOGIA DE UMA POÉTICA (Anome Livros/MG/Brasil, 2009), contraantologia em livrodvd com 101 poetas de Portugal, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Brasil (Minas Gerais). Fundador/editor da Anome Livros, prêmio Jabuti/2009. Curador do projeto de leitura, vivência e memória de poesia Terças Poéticas (Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais/Palácio das Artes/Belo Horizonte/MG/Brasil). Diretor/roteirista/apresentador do programa Tropofonia (prêmio Roquette-Pinto/2010), rádio educativa 104,5 UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Poesia traduzida e publicada em espanhol, inglês, francês, italiano, alemão, finlândes, húngaro. Ecoperformances de poesia biosonora apresentadas no Brasil e América, Europa e África. E-mail: wilmarsilva@wilmarsilva.com.br
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