Acima do Equador


……………………Stephanie Mitchell/Harvard Staff Photographer

 


Acima do Equador: o que Sevcenko viu lá (ou História e Cultura como missão)

Por Andrea Cristina Muraro e Luiz Maria Veiga
 

O cronista holandês Gaspar Barleú, viajando pelo Brasil do século XVII afirmou que não havia pecado abaixo da linha do Equador. Na entrevista concedida à Revista Crioula, o professor Nicolau Sevcenko falou-nos da sua visão particular do que há acima da linha do Equador em matéria de estudos de cultura brasileira e outras culturas relacionadas à língua portuguesa. Falou-nos do seu trabalho na Universidade Harvard, das comunidades luso-falantes que há na Nova Inglaterra, dos papéis desiguais de Portugal e do Brasil na divulgação da língua e da cultura nos EUA e na Europa, de sua convivência com o professor Homi Bhabha e, ainda, do seu “engajamento lúdico” com o texto literário, na oportunidade em que se reeditou sua tradução de Alice no país das maravilhas, o clássico de Lewis Carroll. Nicolau Sevcenko, filho de imigrantes russos, nasceu em 1952, perto do final da primavera, entre o mar e o Orquidário, na cidade de São Vicente, na Baixada Santista e por causa disso torce pelo Santos Futebol Clube até hoje. Pequeno ainda, sua família subiu a serra do Mar e se mudou para São Paulo. De coletor de metais usados para reciclagem, office boy, leitor voraz (ainda assim permanece) e excepcional jogador de handebol (foi heptacampeão nos Jogos Estudantis com o Colégio Américo de Moura e jogou ainda no Juventus, General Motors, São Caetano e Santo André) a professor e escritor, fez um pouco de tudo pelos quatro cantos da cidade. Formou-se e doutorou-se em História Social na Universidade de São Paulo. Teve a honra de contar com Sérgio Buarque de Holanda em sua banca de doutorado, a última banca de que o ilustre historiador participou. Logo se tornou professor no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da universidade em que se formou e ali permaneceu até se aposentar. Trabalhou também na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, na Universidade Estadual de Campinas e, como professor-visitante, em universidades como a de Londres, no Reino Unido, as de Illinois e Georgetown, nos Estados Unidos, onde ainda atua, agora como professor titular na Universidade Harvard. Ligado às grandes questões do mundo contemporâneo, mantém uma colaboração ativa com jornais, revistas e publicações independentes.
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Entre seus livros mais importantes estão A revolta da vacina (1983, com reedição em 2010 pela Cosac Naify); Orfeu extático na metrópole: São Paulo nos frementes anos 20 (1992), seu trabalho de livre docência; A corrida para o século 21: no loop da montanha-russa (2001); Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República (2003), sua tese de doutorado (de 1981, publicada originalmente pela Brasiliense em 1983, galardoada com o Prêmio Moinho Santista Juventude, na área de História do Brasil e com o Prêmio Literário São Paulo, como ensaio literário); além de organizar o terceiro volume da História da vida privada no Brasil: da belle époque à era do rádio (1998), todos pela Companhia das Letras. Atualmente trabalha num grande estudo sobre Hélio Oiticica e sua época. No campo mais específico do texto literário, Nicolau Sevcenko publicou o conto infantil “A lenda do fim dos gigantes e o surgimento dos homens”, tocante história que desvenda a origem dos canhotos segundo uma velha tradição russa, no volume Vice-versa ao contrário (Companhia das Letrinhas, 1993). Também traduziu contos de fantasia de Oscar Wilde, no livro Histórias para aprender a sonhar (Companhia das Letrinhas, 1996). Mas confessa que sempre teve um encanto especial por Alice no país das maravilhas, obra que traduziu em meados da década de 1980 e que foi relançada pela Cosac Naify em 2009. Para a nova edição, Nicolau escreveu um posfácio e traduziu também os poemas que integram a narrativa, o que não havia feito da primeira vez.
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Revista Crioula — Fale-nos sobre como ocorreu a criação do David Rockefeller Center for Latin American Studies na Universidade Harvard e em que medida isto impulsionou os estudos sobre o Brasil.

Nicolau Sevcenko — Na cena das universidades americanas, há um papel tradicional dos departamentos de língua espanhola: ter desdobramentos na área de estudos latino-americanos, hispanoamericanos. Mas o Brasil nunca fez muito parte da cena acadêmica americana, apesar de ser metade da América Latina. Havia algumas poucas universidades que tinham bons acervos de fontes bibliográficas sobre o Brasil. Podemos lembrar, em Washington, a Universidade Católica da América, com o acervo originado pela doação da biblioteca de Oliveira Lima, reunida quando ele foi professor ali, e que, por isso, leva seu nome. Também há na Universidade do Texas4, em Austin, provavelmente o melhor acervo sobre o Brasil e a respeito do Brasil, organizado pelo prof. Richard Graham; e a Universidade de Yale, com um acervo muito mais sobre literatura e poesia, organizado pelo professor Andrew Jackson. Eram as três grandes referências. De qualquer forma, os estudos brasileiros estavam numa situação bastante minoritária. O tradicional e o consolidado era o estudo da cultura hispano-americana. Só que o interesse pelo Brasil, não faz muito, consolidou-se como um fenômeno nos EUA, e o David Rockefeller Center for Latin American Studies 5, organizado em Harvard, que nasceu há mais ou menos dez anos, foi criado com essa dupla dimensão: interessar-se não só pelos estudos hispano-americanos, também pelos luso-brasileiros. Neste sentido, assumiu um papel e tem uma condição de pioneirismo que, àquela altura, foi também incentivado pelo próprio governo dos EUA e por várias outras universidades. Isso veio, de certa forma, a reconfigurar o panorama acadêmico no que se refere aos estudos latino-americanos, colocando o Brasil como parte dessa cena. A minha própria contratação pela Universidade Harvard veio no sentido de reforçar a ala de estudos brasileiros, e particularmente, criar esta e latino-americanos. Assim, se a gente olha para o futuro, a tendência é haver uma inversão: acho que há um enorme investimento, enorme estímulo ao desenvolvimento dos estudos brasileiros e luso-brasileiros muito a partir da mudança da posição, da presença do Brasil, no contexto da economia internacional nas últimas décadas. A tendência atualmente é de um crescimento muito acentuado de matrículas dos alunos americanos em cursos relacionados a estudos luso-brasileiros, superando a procura por estudos hispano-americanos. É, portanto, um momento particularmente otimista e com o qual eu me identifico, sinto que posso ter um papel relevante e posso ajudar a definir este novo momento.

Revista Crioula — Hoje, os estudos luso-brasileiros abarcam principalmente o Brasil?

Nicolau Sevcenko — De longe o carro-chefe é o Brasil. Tradicionalmente havia um interesse mais forte em relação a Portugal. Mesmo nas áreas dos departamentos onde havia uma abertura maior para a língua portuguesa, era para o estudo de literatura portuguesa, havia uma ênfase muito maior do lado português do que do lado brasileiro, por conta da longa relação histórica dos EUA com Portugal. Como é sabido, Portugal deve a sua independência, em grande parte, ao patrocínio político e militar da Inglaterra, do Reino Unido, desde o tratado de Methuen [1703] e antes disso, desde a independência do Mestre de Avis [1385]. Depois da I e II Guerras Mundiais, esta situação se alterou. Portugal passou a ser fundamental na realocação das bases americanas ao redor do mundo; então as áreas remanescentes do império português espalhadas pelos continentes serviram para os EUA montarem uma rede de bases e, a partir disso, estabelecer uma forte relação com Portugal. O Departamento de Estado definiu o português como uma das línguas prioritárias para o ensino nos EUA. Recentemente, passou a haver uma destinação de verba pública anual para estímulo dos estudos dessa língua, o que é uma vantagem para as universidades que querem abrir departamento de língua portuguesa,porque recebem a verba suplementar muito generosa que sempre é imensamente bem-vinda. Mas, por essa relação histórica com Portugal, a ênfase sempre foi em língua portuguesa de Portugal, cultura portuguesa de Portugal e uma ênfase menor nas ex-colônias. O Brasil é que chegou há pouco neste contexto, ele não é só novo na sua relação com a América Latina, mas novo também na própria relação com Portugal, ao dividir com a antiga metrópole as atenções da língua portuguesa. Hoje é muito natural, por conta da situação proeminente que o Brasil assume no bloco de países emergentes, que os estudantes tenham um interesse muito maior em aprender a língua portuguesa tal como ela é falada no Brasil e se familiarizar mais com a cultura, características econômicas, geográficas e sociais do Brasil do que com as de Portugal e das ex-colônias. De qualquer forma, a ênfase, o interesse maior é relacionado às ex-colônias, não a Portugal, na medida em que o perfil do aluno que procura estes cursos de língua e cultura luso-brasileiras tem uma inclinação para trabalho de motivação social junto a populações carentes, como medicina preventiva, apoio a comunidades excluídas, minorias e todo tipo de trabalho de ONG que tenha conotação ecológica. Por isso o Brasil e as ex-colônias têm muito mais poder de atração do que Portugal.

 

[Veja entrevista completa  no PDF abaixo]

 

 

 

 

 

 

 

A Revista Crioula é uma publicação científica dos alunos de pós-graduação da Área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo (ECLLP-DLCV-USP).

Andrea Cristina Muraro e Luiz Maria Veiga são Doutorandos em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela FFLCH/USP.

 




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