O espreitador amoral
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A indefinição e o alargamento de gêneros parece ser a tônica do trabalho de Nuno Ramos com as palavras. É poesia, prosa poética ou poema em prosa?
Nuno gosta das palavras. Esgarça-as, fratura-as, cospe e esporra nelas como um artista que faz questão de afirmar não estar nem aí para as categorias esquemáticas da literatura ou dos jogos do sistema literário. Se o resultado disso é bom ou não, há controvérsias, mas a meu ver areja a cena e acaba fazendo bem a todos.
Foi como um intruso no campo da poesia que ele foi observado (e não lido) por alguns de nós, poetas, ou pensadores do fazer poético. Até a repercussão de alguns de seus livros e, posteriormente, dos prêmios e reconhecimento que abocanhou, seu nome circulava com mais desenvoltura no circuito das artes plásticas.
Nuno Ramos é pintor, desenhista, escultor, cineasta, cenógrafo, compositor, formado em filosofia e, permeando a tudo, escritor. A labuta com as palavras já se podia notar, em seu trabalho como artista plástico, como um dos componentes de seu processo criativo.
Comecei a lê-lo a partir de seu livro baudelairiano de contos O mau vidraceiro, de 2010, e fui atrás do anterior, Ó, 2008 (contos, prêmio Portugal Telecom de Melhor Livro do Ano em 2009), para saber que ele havia começado com um livro de poesia, Cujo, 1993. Depois, li Junco com prazer — livro com intuições poéticas e imagens que saltam o tempo todo através de uma linguagem esgarçada, sem muito apuro formal, mas mesmo assim com muitas revelações. O livro ganhou o prêmio Portugal Telecom de Melhor Livro de Poesia de 2011.
Sua escritura, mesmo a catalogada como poesia, é essencialmente narrativa, com um narrador escorregadio, diferentemente do que costumamos encontrar na prosa tradicional. Por isso, e por seu texto revelar uma poética difusa, estranha, sem o rigor formal que a tradição da poesia nos exige, mas com cortes nas frases que nos são oferecidas como versos, fica mais fácil designá-la como prosa poética, ou proesia, essa coisa disforme que parece querer abraçar a tudo que não conseguimos caracterizar como poesia e não ousamos chamar de prosa.
Sua escritura flerta e conduz a fatura do texto a um “estado de poesia”, mas fica evidente que ela não consegue prescindir de um plano narrativo. Pode até lançar mão de algumas figuras típicas da poesia, como a aliteração, a metáfora, a elipse, mas tais elementos estão subordinados ao ritmo ou à cacofonia alongada do discurso.
Já que mencionamos discurso, deixemos nosso sermão eloquente de lado e falemos mais diretamente de seu livro mais recente: Sermões.
O título do livro remete ao gênero textual “sermão”, o qual encontramos no âmbito do discurso argumentativo. Não dá pra pensar em “sermão” sem lembrar do persuasivo padre Antônio Vieira e seus sermões polêmicos e críticos à colônia e colonos, a seus adversários católicos e protestantes. Tudo escrito e dito retoricamente, com um encadeamento lógico de ideias e conceitos, mas com o autor visceralmente envolvido como um pregador que oferece seu corpo, sua voz, seu pensamento e sua vida à assembléia fascinada.
O livro de Nuno retoma estrategicamente esse arquétipo do sermão, nem tanto como gênero, mas como uma readequação, rememoração e reorganização da própria vida de seu narrador na tribuna da obra: o velho professor de filosofia aposentado, quase obsceno e, sem dúvida, fora de cena, utópico, fora de todos os lugares, mas habitando um corpo que ainda pulsa e vibra em rememoração.
Não sei o nome da cidade em que piso
nem da árvore que me acolhe
sob as folhas, nem da rua
que aperta meus passos contra o muro.
Não confio em placas, mapas, GPS.
Memória não me serve
só a ponta
comida por tabaco
e dente do meu dedo.
Com ela acho a vulva, uva
pisada. Com ela toco a cãibra
dilatada de meu pau.
O livro se divide em sete partes — Tenda (Parêntese. Moenda. Minha mãe nascendo.), Prédio, Sermões, Rosário, Há. Alguém e Laje — e busca reconstruir com um discurso errático, enumerativo, repleto de justaposições com paisagens mnemônicas, aquela trajetória do eu que coincide com uma parte da filosofia que tem por objeto o estudo das propriedades mais gerais do ser, apartada da infinidade de determinações que, ao qualificá-lo particularmente, ocultam sua natureza plena e integral.
Pergunto
sem cinismo
como vai o seu
Curso? Aprendeu AL
emão, H
egel? Sim? Não? Difícil é
Kant. E estou feliz
falando do que não sei
nem me interessa.
A noite é minha
a filosofia é minha
e os nomes que me assustaram a vida toda (Leibni
z, Lacan) formam minha família
agora, amigos
de infância, cães de estimação, estirp
e, etnia
porque me levam
a uma foda boa.
A começar pela ilustração da capa, o sexo, o cio, a loucura e o frenesi da “carne” permeiam todo o livro, texturas a demarcar a experiência corporal da vida e da morte, do aconchego e do abandono, do físico e do metafísico.
O texto camaleônico de Nuno Ramos revela em suas tramas inúmeras referências. Dos poetas brasileiros Carlito Azevedo e Manuel Bandeira até Drummond, passando por filósofos, artistas plásticos, filmes e tantos outros escritores: a descrição dos filmes Stalker, de Andrei Tarkóvski, e A palavra, de Carl Dreyer; a Monadologia, de Leibniz; o eterno retorno de Nietzsche; a ode Os que partiram, de Hölderlin, o poema Diante da casa, de Kaváfis; a ode número 4 das Odes de Duíno, de Rilke; O guardador de rebanhos, de Alberto Caeiro, e Sexus, de Henry Miller.
Nuno chega a explicitar no final do livro o fio narrativo de cada uma das partes de Sermão; uma pequena concessão ao leitor, mas que sugere certa insegurança com a fatura e a recepção do livro.
No aspecto formal de sua “poesia” é necessário ressaltar que “os versos” oferecidos ao leitor por Nuno Ramos são recortados como pretensos enjambements que revelam uma execução um tanto aleatória. Ou seja, não se justificam enquanto potencialização do sentido referido no poema, a não ser pra demarcar uma certa “doideira” ou loucura da elocução.
Girass
óis sob as pedras.
Como foi que levantaram
todo esse peso? Jardim
soterrado na ladeira
buscando luz, infiltrando
p
étalas amarelas
no desvão dos paralelos azuis.
Conseguirão
içar toda a cidade?
Terão força muscular para isso?
Apesar do mencionado acima, a fagulha poética está lá e algumas imagens pinceladas valem todo o livro.
Como foi que levantaram
todo esse peso?
[… ]
Conseguirão
içar toda a cidade?
No mais, Nuno busca conseguir captar com sua linguagem o fluxo de consciência de seu narrador, ou talvez seja melhor dizer, de seus vários narradores. Suas várias identidades e experiências articuladas no tecido de sua narrativa.
A natureza de seu texto, é necessário reafirmar, nos apresenta como resultante um deslocamento inesperado em relação aos modelos habituais. Uma prosa poética inacabada, com um matiz aventuroso, recortada em pretensos versos, que às vezes funcionam, outras não.
[…]
Tomaria um chá mágico
que fizesse meu pau crescer
até ocupar a elipse côncava
da cúpula. Roçaria minha glande
na alta pintura
esporrando nas torres
e badalando os sinos.
Por fim, o livro de Nuno Ramos é um enfeixe de “sermões” a anunciar, como anjos caídos, a inexistência de salvação e que a luta do homem para compreender a existência será eterna. O resto é paisagem.
[Texto publicado originalmente no Jornal Rascunho]
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Edson Cruz é escritor e editor do portal MUSA RARA (www.musarara.com.br). Graduado em Letras pela USP, publicou três livros de poesia, uma adaptação em prosa do clássico indiano Mahâbhârata e um livro de depoimentos sobre o que seria a Poesia. Seu poemário mais recente, Ilhéu (Editora Patuá), foi semifinalista do Prêmio Portugal Telecom 2014. E-mail:sonartes@gmail.com
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