Pés na lua


………………………………………. [foto by link]

.
(Este texto fala de Emilie Sugai, dançarina de butô. Seu espetáculo solo Lunaris será apresentado em São Paulo em 2012, em data a ser definida.)
.

.
Noite. Lua cheia. Uma lagoa. Eis o cenário. Mas não é tão simples como parece.
A lua, refletida na água, é também a lagoa.
Porém, a lua não está contida nessa lagoa: o luar transborda e invade o caminho que circunda a lagoa.
Lua, lagoa, caminho se confundem.
O caminho é parte da lagoa. Assim, quem percorre esse caminho percorre a lagoa e a lua nela refletida. E se duplica, multiplica.
Isso é o butô.

*   *   *

Nesse cenário, os pés estão na lua. Que é múltipla: lagoa, caminho.

*   *   *

Quem dança butô na lua se multiplica na lagoa e no caminho.

*   *   *

Esse cenário é ocidental e oriental.
Ocidental, porque é inconfundivelmente brasileiro. Ouvem-se os sons do Brasil nessa lua não silenciosa. É uma lagoa.
Oriental, porque nessa lua um animal mágico pila arroz ou as sementes da imortalidade. Ele não para de moer sementes a noite inteira. Num pilão.

*   *   *

Certa vez, num outono já longínquo, um poeta japonês pôs os pés nessa lua, nessa lagoa, enquanto caminhava ao seu redor.
Uma, duas, várias vezes.
(Poesia inseparável da lua, da lagoa e do caminho.)
Ele registrou essa experiência num haiku, poema breve.
Em japonês, o texto de Bashô diz:
meigetsu ya / ike wo megurite / yo mo sugara
Uma tradução possível (literal?) seria:
“lua cheia
rodeando o lagoa
a noite inteira”

*   *   *

Agora, nesse mesmo cenário, feito de lua-lagoa-caminho, o butô “vaga”. “Paira”. Ou, simplesmente, “para”.
Expectativa na lua, na lagoa, no caminho.

*  *  *

Um anfíbio. Inclina-se no brejo.
Um tempo, um corpo. Dois ritmos.
Braços atrás: asas nas costas curvas.
Braços para baixo, como pernas de aranha.
O reflexo do macaco.

*  *  *

Eis o princípio do butô “da lua”, lunaris.

*  *  *

Os cabelos longos são uma máscara, entre outras máscaras, outras faces.
Máscaras e roupas. Entra-se nelas. Sai-se delas.

*  *  *

O múltiplo butô passeia ao luar.
É mosca e mosquito.
(Bem depois, também pessoa, ancião, guerreiro, menino.)

*  *  *

O corpo se levanta, a sombrinha o escora, ergue-o.
O cabo longo se firma diante do rosto sem face fixa.
Então o cabo desliza na lagoa como um remo.
Ou se ergue como um pé de pássaro. Garça ou grou.

*  *  *

O corpo, ereto ou curvo, salta numa vitória-régia. Num camalote.
Os pés afundam na lama e avançam na massa viscosa.

*  *  *

Entre o burburinho dos insetos, uma música seca e outra úmida, suada.
Pilão moendo sementes mágicas.
A batucada tamborila como chuva na folhagem.

*  *  *

O cabo longo da sombrinha é uma arma: o caçador, o índio enfrenta um animal secreto, um dragão ocidental e oriental.
Uma serpente serpenteia: o caçador é a própria caça, ele mesmo é o dragão.

*  *  *

O butô toma posse da lagoa e da lua: o cabo da sua sombrinha é o mastro da bandeira.
O butô é o pescador, mas não avança na água parada. O butô vai para os lados e para trás, segurando o longo remo.

*  *  *

A sombrinha fechada é uma tocha com um fogo claro crepitando.
O fogo se aviva, a sombrinha se abre.

*  *  *

O corpo que se deita ao lado do cabo da sombrinha quer despir-se como ele.
Ambos nus.
A sombrinha aberta é abrigo, roupa: cobre, esconde, tanto quanto expõe.

*  *  *

O cabo da sombrinha é um balanço.
Nele o corpo se balança na lua.

*  *  *

A sombrinha fechada é fruta tropical que murcha, mas é sumarenta quando se abre.

*  *  *

A roupa é uma tenda. Com mangas amplas.

*  *  *

O corpo cai sem tropeçar. Pedra. A lua é rasa.
Então o butô ressurge, como se subisse do fundo de um poço.

*  *  *

O cabo da sombrinha é o cajado do ancião.
O cabo da sombrinha é uma planta sendo arrancada do chão.
Mãos de índio. Mãos de samurai abrindo caminho.
A sombrinha soca o chão como se socasse sementes mágicas no pilão.

*  *  *

Máscaras.
No ar.
Esvoaçando como besouros.
Face negra.

*  *  *

Em meio aos sons em volta da lagoa, a sombrinha é uma vassoura lançando tudo para trás: máscaras, panos…

*  *  *

O cabo da sombrinha é um bambu.
Um animal escala o bambu, que é também um raio.

*  *  *

O cabo da sombrinha é corda bem esticada, onde um corpo humano se agarra. Para elevar-se.

*  *  *

Como uma rede, a sombrinha sonda o ar, aprisionando insetos ou peixes, ou a lua prestes a sumir.
Amanhece?
Talvez sim.

*  *  *

O butô povoa a lua, povoa a lagoa, povoa o caminho.
O corpo não se aparta da lua, não se aparta da lagoa, não se aparta do caminho.
A dança busca a lua na lagoa que o caminho contorna.
Já amanhece?
Talvez.

*  *  *

O butô tem os pés na lua.

*  *  *

E na lua há um caminho que circunda uma lagoa.
Sob uma sombrinha ou nela apoiado como num cajado que também é planta, remo, pilão, corda… e muito mais, o butô amanhece.
O sol é outra história.

 

.

 

.

Sérgio Medeiros nasceu em Bela Vista (MS). É poeta e tradutor. Ensina literatura na UFSC. E-mail: panambi@matrix.com.br




Comente o texto


*

Comente tambm via Facebook