O jogador e sua bola


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A bola não é um mero artefato de couro. É um ser alado, de ouro, ave sagrada, que rompe as traves da gaiola, isto quando não é flor que ao abrir-se em gols nos mostra a luz de sua corola.

A bola difere do diamante. Não tem arestas. E, no entanto, arisca, risca a pele em ritmo de festa. Não tem arestas porque é polida, não pela mão, mas pelo pé do ourives, caso se chame Garrincha ou Pelé.

Se na Espanha a bola fosse um  touro, no gol, um toureiro faria da rede a capa ou estola. Mas, sendo no Brasil, ela é samba que o sambista cantarola, é toque na cuíca e caçarola, e a bandeira que o passista na avenida desenrola.

O jogador não é só mestre. É aluno que  carrega consigo a escola. E para ele o mundo é a bola. E sendo a bola seu coração, ele sabe  a lição de cor, não cola.

O jogador é um ator. Ele joga,  encena a paixão no estádio tornando público o seu caso de amor com a bola. Mas pode ser ator dramátrico ou histrião. Neste caso, o “ ser ou não  ser” é um  chavão.

A bola é um raio que, quando cai no gol, vira trovão de bombas, gritos e alaridos da multidão.

A bola também tem uma contradição: pede que a persigam e ri da perseguição.

O bom jogador é como o cantor: não sabe mais o lmite entre sua voz e a canção.

Ao mau jogador  a bola parece um cactus roliço, um porco-espinho que a canela ou alma esfola. Ataca como um pivete que quando passa não se consegue pegar pelo pescoço ou gola.

A bola é como o trigre no zoológico da grama. E o jogador é o domador do fero instante sem usar o chicote ou chama.

Mais que amante que no campo da cama joga o jogo inaugural, o jogador é a cartomante e sua bola de cristal, jogando com o nosso ser, a nos trazer o bem e o mal.

Se a bola é bala, o corpo do jogador é a pistola, e, quando atira furioso, o adversário cai e sai de padiola.

A bola é bela? A bola é a fera que nos abala e desespera? Ou a bola é como a bula, ambígua, veneno e remédio, que nos mata e consola, mulher fatal que nos ama e desola?

Não, a bola não é a Lua, pálida quimera. Mais que a solitária esfera, a bola é um cometa, que de quatro em quatro anos nos assola.

Pensamos olhar a bola, mas a bola com seu olho é que nos olha.

A bola é como a Terra: redonda e humana. É como o homem: cheia de ar , inflada ânsia. A bola é nossa errância.

A bola não é coisa de adulto. É o que sobrou da infância.

Se o campo é um  labirinto de pernas, a bola é um fio de novelo que desenrola. Nos foi dado por Ariadne, contra o Minotauro e a degola.

O jogador é um prestidigitador, que na última hora ante a torcida aflita tira um  gol da cartola.

Também um ilusionista, coisa de artista de circo, que faz da bola argola, causando no  estádio espanto, e sobre a cabeça do atleta a bola se faz de auréola fazendo do homem um santo.

O jogador, enfim, é um  escritor. Ele joga com o instante e a glória. Tem os pés no chão e a cabeça nas nuvens, para cabecear a história.

O jogador é um  poeta.- E como poeta, um fingidor. E joga tão perfeitamente que nos faz pensar que é poesia o que é jogo simplesmente.

 

NOTA: DIVERSOS LEITORES PEDIRAM A REPUBLICAÇÃO  DESTA CRONICA DE 01.06.1986

 

 

 

 

 

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Affonso Romano de Sant’Anna: Um dia dizendo seus poemas no Festival Internacional de Poesia Pela Paz, na Coréia (2005), ou fazendo uma série de leituras de poemas no Chile, por ocasião do centenário de Neruda ( 2004), ou na Irlanda, no Festival Gerald Hopkins(1996), ou na Casa de Bertold Brecht, em Berlim(1994), outro dia no Encontro de Poetas de Língua Latina(1987), no México, ou presente num encontro de escritores latino-americanos em Israel(1986), ou participando o International Writing Program, em Iowa(1968), Affonso Romano de Sant’Anna tem reunido através de sua vida e obra, a ação à palavra . Nos anos 90 foi escolhido pela revista “Imprensa” um dos dez jornalistas que mais influenciam a opinião pública. Em 1973 organizou na PUC/RJ a EXPOESIA, que congregou 600 poetas desafiando a ditadura e abrindo espaço para a poesia marginal; foi assim quando em 1963, no início  de sua vida literária, tornou-se um dos organizadores da Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, em Belo Horizonte. Com esse mesmo espírito de aglutinar e promover seus pares criou, em1991, a revista “Poesia Sempre” que divulgou nossa poesia no exterior e foi lançada tanto na Dinamarca, quanto em Paris, tanto em São Francisco quanto New York, incluindo também as principais capitais latino-americanas. Atento à inserção da poesia no cotidiano, produz poemas para rádio, televisão e jornais. Tendo vários poemas musicados (Fagner, Martinho da Vila), foi por essa e outras razões convidado a desfilar na Comissão de Frente da Mangueira na homenagem a Carlos Drummond de Andrade, em 1987.  Apresentou-se falando seus poemas, em concerto, ao lado do violonista Turíbio Santos. Tem também quatro CDs de poemas: um gravado por Tônia Carrero, outro comparticipação especial de Paulo Autran, outro na sua voz editado pelo Instituto Moreira Salles e o mais recente outro pela Luzdacidade, com a participação de atrizes e escritoras. Seu CD de crônicas, tem participação especial de Paulo Autran. Escreveu dezenas de livros de ensaios e crônicas. Como cronista, aliás, substituiu Carlos Drummond de Andrade no “Jornal do Brasil” (1984). Blogue:http://affonsoromano.com.br/blog/index.php E-mail: santanna@novanet.com.br

 




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