Grécia e o Sintagma


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Como pagar a dívida da Grécia
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Cheguei em Atenas  há poucos dias, ou melhor, no dia exato em que ocorreu a eleição que deveria decidir se a Grécia iria ou na permanecer na Zona do Euro. Diziam que se o novo governo rejeitasse o Mercado  Comum Europeu, a Grécia estaria definitivamente perdida.

Por isto, embora tenha vindo para um encontro de literatura, trouxe no bolso um plano para salvar a Grécia. Se a vida inteira tentei salvar o Brasil, porque não salvar também a Grécia? E o plano, vocês vão ver, tem a sua lógica. Trata-se de  salvar um país através da cultura, e é o seguinte: em matéria de dívidas,  nós é que somos todos devedores da Grécia. Se tirarmos Sócrates, Platão, Aristóteles  (sem  falar em uma dezena de outros pensadores gregos) a filosofia simplesmente acaba. Se tirarmos Sófocles e suas tragédias e o teatro grego as suas comédias, o teatro ocidental fica desorientado. Nem Nietszche nem Heidegger existiriam sem a Grécia. O que seria da psicanálise sem o “Complexo de Édipo” em Freud? O que seria de nosso vocabulário? E a riqueza dos mitos gregos? E eu nem falei ainda da ciência, da matemática, da arquitetura. E o conceito de democracia, de onde vem?

Em síntese: se nos tirássemos Homero da história da literatura ela perderia seu fundamento principal. Há algum tempo, a atriz Melina Mercuri, quando Ministra da Cultura, sugeriu que todos os países que roubaram monumentos gregos, os devolvessem.

Eu vou mais longe e  começo por dizer que nós é que temos que pagar a dívida para com a Grécia. Quantos milhões de pessoas no mundo vivem da  cultura grega? Ninguém paga aos gregos pelos direitos autorais. Quantos editores, professores, atores, tradutores vivendo às custas da cultura grega? O  mundo acadêmico desabaria na América e na Europa sem a Grécia. Querem saber?: nem o Renascimento italiano a que devemos tanto, existiria se não fosse a Grécia.

Meu plano é simples: com o apoio da UNESCO criar o imposto sobre tudo o que importamos e usamos da cultura grega. Que os gregos modernos continuem simplesmente com suas oliveiras,  dançando e quebrando pratos, abrindo suas ilhas luminosas aos turistas e oferecendo seus museus e ruínas. Nós pagaremos, olímpica e dionisiacamente, para que eles simplesmente existam.

Nossa dívida para com a Grécia não tem preço.

 

 

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Na Praça Sintagma
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ATENAS- Não se vai à Grécia. Retorna-se à Grécia. Ela está no nosso DNA  cultural. Conhecê-la a primeira vez é revê-la. Havia eu já vindo aqui muito antes da primeira vez que aqui vim. Talvez a primeira viagem tenha sido na infância através das estampas do sabonete Eucalol: Teseu, Ulisses eram meus íntimos.

De repente, estou  na Praça Sintagma. Que nome mais sugestivo. Aprendemos na universidade que o discurso é feito de sintagmas (horizontais) e paradigmas (verticais). Pois quando aqui cheguei saí andando horizontalmente pela Praça Sintagma, onde se reuniam “os indignados”. Aí fui notificado que a Grécia não ia mudar de paradigma: ia continuar na Zona do Euro.

Dessa praça contemplo o neoclássico Palácio Presidencial, os soldados gregos com seus saiotes a adornos sendo observados pelos turistas durante a troca da guarda. Antes de aqui chegar, li nos jornais que neste país havia aumentado a taxa de suicídios. Descobri na praça, a àrvore junto à qual se matou um senhor de 78 anos por causa da crise. Tirei uma foto da árvore e das oferendas no seu tronco. (Confesso que tenho a mesma síndrome daquele pintor holandês que retratou as bodas do casal Arnolfini e que escreveu no quadro: “Johan esteve aqui”). Pois aqui, uma vez mais, me meti na história alheia. Tentei sentir a tal crise. Tudo tão tranquilo. Não havia ruídos de campanha eleitoral. Nenhum cartaz sujando a cidade. Vim preparado para  assistir a uma revolução. A cidade está  suja mesmo é de grafites – uma praga da pós-modernidade. Mas a história às vezes se faz em silêncio.

Por exemplo: dizem que a Grécia tem 772 armadores, gente rica que controla o país. Mas o capital e escritórios deles estão em Londres. Os donos do mundo não estão  à vista. O capital não tem rosto nem lugar.

Volto aos museus, subo a Acrópole. Ali, mais de 2.500 anos nos contemplam. Uma multidão de shortinhos portando garrafas d’água entre colunas arruinadas e em restauração. Muitos jovens. Muitos orientais. Todas as raças. Todos querem saber o que foi esse enigma: como é que se produziu uma cultura como essa,  como é que não podemos viver sem esses filósofos, essa arte, essa beleza.

Contam-me que os gregos atuais não têm muita relação com os antigos. Tantos séculos dominados por turcos, o peso da religião ortodoxa – a cruz está até na bandeira fincada nos terraços; enfim, os grandes especialistas em Grécia antiga são estrangeiros, o que nos faz pensar que os gregos atuais são um pouco estrangeiros aqui.

Mas é uma cidade  harmônica. Quando o avião baixa já notamos a ausência de favelas. Ah! esse remorso brasileiro. Se estão em crise aqui, onde estão as favelas? E aí um paradoxo para nós: dizem que o Brasil está ótimo. Quarenta milhões de brasileiros aderiram ao consumo. Até  os comerciantes aqui se referem à nossa moeda forte. Estamos ótimos,  mas a miséria salta aos olhos nas periferias de nossas cidades. Já aqui eles estão em crise e você  não vê miséria.

Em todo lugar vejo pessoas falando ao celular. Onde o oráculo de nosso tempo? Delfos tem alguma coisa a nos dizer?  Essa língua grega moderna tem sortilégios. Vejo escrito: “Museu Polêmico”. Significa: “Museu de guerra”. Polemizar é guerrear. Alguém quer um café normal, pede:  “Café canônico”.

A raiz das palavras. A raiz das coisas. Voltar às raízes.

Ainda não andei de metrô que é recente e foi construído sobre ruínas, desviando-se de ruínas. Vivem sobre ruínas. Sobre ruínas caminhamos, sobre ruínas de ontem e hoje eles votaram no domingo. Me dizem uma coisa ainda mais reveladora: a praça Sintagma foi construída sobre um cemitério.

A escrita é isto: uma ponte entre passado e o presente. Lembrança de ruínas. E edificação.

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(Publicado originalmente no Estado de Minas e parte como comentários na Radio Metrópole/Salvador)

 

 

 

 

 

 

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Affonso Romano de Sant’Anna: Um dia dizendo seus poemas no Festival Internacional de Poesia Pela Paz, na Coréia (2005), ou fazendo uma série de leituras de poemas no Chile, por ocasião do centenário de Neruda ( 2004), ou na Irlanda, no Festival Gerald Hopkins(1996), ou na Casa de Bertold Brecht, em Berlim(1994), outro dia no Encontro de Poetas de Língua Latina(1987), no México, ou presente num encontro de escritores latino-americanos em Israel(1986), ou participando o International Writing Program, em Iowa(1968), Affonso Romano de Sant’Anna tem reunido através de sua vida e obra, a ação à palavra . Nos anos 90 foi escolhido pela revista “Imprensa” um dos dez jornalistas que mais influenciam a opinião pública. Em 1973 organizou na PUC/RJ a EXPOESIA, que congregou 600 poetas desafiando a ditadura e abrindo espaço para a poesia marginal; foi assim quando em 1963, no início  de sua vida literária, tornou-se um dos organizadores da Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, em Belo Horizonte. Com esse mesmo espírito de aglutinar e promover seus pares criou, em1991, a revista “Poesia Sempre” que divulgou nossa poesia no exterior e foi lançada tanto na Dinamarca, quanto em Paris, tanto em São Francisco quanto New York, incluindo também as principais capitais latino-americanas. Atento à inserção da poesia no cotidiano, produz poemas para rádio, televisão e jornais. Tendo vários poemas musicados (Fagner, Martinho da Vila), foi por essa e outras razões convidado a desfilar na Comissão de Frente da Mangueira na homenagem a Carlos Drummond de Andrade, em 1987.  Apresentou-se falando seus poemas, em concerto, ao lado do violonista Turíbio Santos. Tem também quatro CDs de poemas: um gravado por Tônia Carrero, outro comparticipação especial de Paulo Autran, outro na sua voz editado pelo Instituto Moreira Salles e o mais recente outro pela Luzdacidade, com a participação de atrizes e escritoras. Seu CD de crônicas, tem participação especial de Paulo Autran. Escreveu dezenas de livros de ensaios e crônicas. Como cronista, aliás, substituiu Carlos Drummond de Andrade no “Jornal do Brasil” (1984). Blogue: http://affonsoromano.com.br/blog/index.php E-mail: santanna@novanet.com.br




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