#Indiferença


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Sabe aquele rapaz estiloso, tipo punk de butique, blusão cheio de tachas e coturnos desamarrados, com ar blasé, que você esbarrou na balada? Ele é indiferente aos animais dos quais arrancaram o couro para sua beca e pisante. E a periguete cafona na escadaria do metrô com estampas de oncinha no rabo e estola laranja de vison falsificada? Ela sonha em ter uma estola de verdade um dia, de preferência na companhia de um corajoso caçador de onças que a leve, abatida e feliz, para Paris. Totalmente indiferente aos animais. E o novo colega do escritório puxando o saco do chefe no primeiro dia? Veio exatamente para gerenciar os créditos de carbono da empresa. A empresa polui aqui e ele manda plantar árvores acolá. Indiferente aos animais daqui e de lá. E o chefe que puxa o saco dos funcionários com o mesmo discurso emotivo nas festinhas da firma? Quase chora ao citar a importância deles no progresso contínuo da expansão corporativa. Até o contínuo sabe que ele é indiferente aos animais. Matem-se os bichos que atravancam o progresso. Aquele amigo boa praça cuja única paixão são os automóveis? Indiferente aos animais que respiram o imaculado ar que sai de sua nova máquina mortífera. E o dirigente de seu sindicato de classe, vociferando contra a indiferença dos patrões? Indiferente aos animais, esse item não está na pauta, companheiro. E o líder dos patrões discursando em defesa da iniciativa privada? Indiferente aos animais, que não podem ficar no caminho da iniciativa mesmo que essa iniciativa transforme florestas em privadas. Mas talvez dê para acreditar na esforçada professorinha de seus filhinhos na escolinha. Ela inclui a natureza no conteúdo das aulas, verdade. Verdade também que seus filhinhos jogam lixo na rua e não dispensam um bifão no prato. O vovô, nossa, este não é indiferente aos animais de jeito algum. Ama seus curiós e sabiás e canários nas gaiolas. A vovó, por sua vez, acha que o papagaio não para de falar porque está bem contente fora da gaiola e adora aquela correntinha que liga seu pé ao poleiro. Os índios são outros inocentes. Nem caçam muitos animais e aves nos bosques em volta da aldeia para comer. O detalhe que eles mesmos acabaram com os bichos e os bosques bem antes da chegada dos brancos predadores varre-se para debaixo do tapete da história. Aquele seu amigo de infância idealista e engajado em causas sociais? Inclua-o na lista dos que não são indiferentes aos animais. Apenas não o provoque com questões práticas como porque aquela comunidade em que ele atua nunca tira o lixo de frente do barraco. Bandas de rock e pop são adoráveis no envolvimento com as causas animais. Defendem até as borboletas monarcas do Afeganistão, desde que isso signifique mais shows e discos vendidos. E aquela manada dos grandes festivais de música, falar nisso, é totalmente ambientalista. Só que deixam um rastro de lixo e sujeira. Nem os invólucros das camisinhas recolhem e retornam aos lares levando somente a ressaca da esbórnia. Aquele político em que votamos, em troca de favores ou trocados de esperança? Indiferente aos animais até a próxima eleição. Ele e seus pares, reconheçamos o mérito, prometem a esquerda e a direita e ao centro com mais do mesmo e uma lábia irresistível. Porém, ecossocialismo, que bicho esquisito esses hippies modernos inventaram. Soluções políticas passam ou pela economia, estúpido povão, ou pela luta de classes, estúpido burguês. Pelo ar, pela água, pela mata ou pelo rio é que não passam. Banqueiros e empreiteiros e pecuaristas e agronegociantes são indiferentes aos animais. Exceto na propaganda. Na publicidade não aparece o verde dos dólares, pega mal. Se não são eles os indiferentes aos animais, então sou eu. Ou você. Ou seu vizinho. Ou qualquer um que se lembre de que somos todos animais e saia de fininho. Na hora agá da crise individual ou coletiva nos comportamos, aí sim, como animais acuados. Recuamos, rosnamos ou atacamos quem atirou a pedra da realidade em nosso frágil telhado de espécie superior. Furando a carapaça blindada de nossos costumes, culturas e ideologias, surge em nossa consciência uma dúvida cruel e persistente: se animais também são iguais a gente, com os mesmíssimos direitos e necessidades e sentires, mudaremos de atitude ou será melhor matar logo toda essa gentinha com pelos, penas e escamas, que nos lembra o apocalipse? Apocalipse só deles ou de todos nós, neste reality show regado à crueldade, mesquinharia e farinha pouca meu pirão primeiro. Por enquanto a maioria de nós já decidimos esconder a consciência embaixo da cama da indiferença e esperar para ver no que dá. Quem (sobre)viver verá. Se a lei de Darwin ainda vale, sobreviverá o mais forte, um espécime totalmente novo, mistura de humano com tecnologia. Quem sabe mais humano e menos indiferente aos fracotes animais.

 

 

 

 

 

 

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Ulisses Tavares anda com o rabo entre as pernas como um vira-lata assustado neste mundo insano e indiferente, onde vidas são apenas coisas consumíveis e descartáveis. Coisas de poeta.

 




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