Do Claro e do Escuro


 

A luz é elemento frequente na obra de e. m. de melo e castro. Ver é a matéria de sua poesia, o absoluto imaterial de uma linguagem em que a lucidez ilumina com luz ácida tudo o que se vê. A luz, que equivale ao ver (um livro fundamental para se conhecer a obra deste inventor tem como título Visão Visual).

Ernesto, como eu aprendi a chamá-lo, é um inventor. O mais radical poeta-inventor da segunda metade do séc. XX, em Portugal. Talvez o único poeta capaz de andar par a par com Camões e Pessoa, nas terras da língua de D. Dinis. Ensaísta, faz de sua poesia um ensaio sobre o ver e o não ver. Lê-lo, em um dos mais agudos estudos sobre Pessoa (O paganismo em Fernando Pessoa, tese que nenhum crítico foi capaz de ver) é provar a sua prosa acadêmica, anti-mofo, pois este octagenário mestre da arte do engenho da Poesia, engenheiro de palavras de se ver no espelho (“palavra a branco sobre negro”) me ensinou que o olho só pode ver o imaterial do pensamento pela escrita (luz negra no branco da memória).

Não é o olho que decifra uma poesia que é matéria — a matéria que existe e não se vê, que dá forma ao pensamento —, mas a intuição. É preciso ler-olhar a palavra que aparece negra sobre o branco do papel, ou branca/luz na tela do computador, em forma de letra que deforma e se transforma: Luz/Lucidez nos olhos que enxergam o que não se vê.

A tipografia pendular (Trans(a)parências) deste mestre das agudezas é materialização das formas da memória para se escrever o que não se vê.

 

Vanderley Mendonça é editor, tradutor e poeta.

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das sensações praticadas

 

1

 

palavras são imagens

mas

imagens não são sempre palavras

por isso

o livro-livro é de palavras

brancas

impressas sobre um fundo

branco

 

2

 

a luz branca solar

contém

todas as palavras-imagem

submersas

num ondulante mar

branco

mudando na mudança muda

fixa nos olhos

 

3

 

a intensidade do branco

está contida

no negro que subjaz

nas imagens

todas que podemos ver

e imaginar

como se tudo fosse isso

e isso aquilo

 

4

 

um carro azul claro parado

no sol

move-se para a frente e para trás

se olho para ele

levita sobre um chão

que se afunda

no olhar fixo branco

meu

 

5

 

toda a realidade real

contida é

num espaço duplo paralelo

que

oscila sobe oscila desce

na música

de cores inaudíveis

ritmos

 

 

6

 

são os quantos sentidos

infinitos

quando uma coisa não tira

a outra

e

se subtrai a si própria

enquanto

a outra própria subsiste

e ri

 

 

7

 

os sentidos alterados

produzem

sensações alteradas em todos

os sentidos

e todos os sentidos alteram

as sensações

das mesmas coisas em si próprias

diferentes

 

 

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E.M. de Melo e Castro

(Covilhã, Portugal 1932). Poeta e ensaísta. Diplomado em engenharia têxtil pelo Instituto Tecnológico de Bradford, Inglaterra, em 1956. Doutor em letras pela USP, em 1998 e Pós-doutor pela UFMG (2008). No Brasil, ministrou cursos de graduação e pós-graduação de literatura portuguesa, brasileira e africana, na USP, UFMG e UFRN. Na PUC/SP e na UNI/BH, ministrou cursos de pós-graduação de infopoesia e cibercultura. Praticante e teórico da poesia experimental portuguesa dos anos 60, introdutor em Portugal da poesia concreta (IDEOGRAMAS, 1961), é considerado pioneiro da videopoesia (primeiro videopoema “Roda Lume” de 1968). A sua poesia, de 1950 a 1990, encontra-se reunida no volume TRANS(A)PARÊNCIAS, Sintra, Tertúlia, 1989, livro que ganhou o Grande Prémio de Poesia Inaset – Inapa de 1990. (esgotado). O livro de ensaios VOOS DA FÉNIX CRÍTICA, Lisboa, Edições Cosmos, 1995, obteve o Prémio Jacinto do Prado Coelho, da Delegação Portuguesa da Associação Internacional dos Críticos Literários. Em 2006, realizou-se uma exposição antológica de 50 anos do seu trabalho visual-literário-tecnológico, no Museu de Arte Contemporânea de Serralves no Porto, com o título O CAMINHO DO LEVE. Em 2012, colaborou no ciclo AS ESCRITAS PO.EX, na casa da Escrita em Coimbra, com a exposição dos mais recentes trabalhos de info e videopoesia, com o título DO LEVE À LUZ. Sua bibliografia activa conta com mais 25 livros de poesia e 18 livros de ensaios de crítica e teoria literária. Livros recentes publicados no Brasil: Neo-poemas-pagãos, Selo Demônio Negro/AnnaBlume, São Paulo, 2010; O paganismo em Fernando Pessoa, Ed. AnnaBlume, São Paulo, 2011; A agramaticidade das feridas do coração (poemas), Ed. Dulcineia Catadora, São Paulo, 2011; Poemas do É, Edições Castelinho, Porto Alegre, 2012.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


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