Cisco no olho da memória
Neste Cisco no olho da memória, dividido em duas partes, “cano curto” e “cano longo”, Reynaldo Bessa apresenta um compósito tributável de um estilo direto cujos poemas acontecem a partir de superfícies de comunicação encontráveis também na prática do trocadilho e na poesia das letras de música. Isto é o que se espera de um autor que é, além de poeta, letrista, cantor e compositor. Porém, neste seu terceiro livro de poemas, Reynaldo Bessa fez mais. Em suas anotações epigramáticas do real, percebe-se que estas superfícies de comunicação sugerem um curioso movimento duplo que envolve os métodos cut-up e pick-up. O leitor poderia acomodar-se nestas superfícies devido à força comunicativa que está em jogo, mas isto até perceber o quão deslizantes são estas superfícies. É que os recortes de realidade operados por Reynaldo Bessa aproximam-se da experimentação técnica da colagem cut-up – aquela inventada por Brion Gysin que William Burroughs desenvolveu e popularizou através de sua poesia e em produções cinematográficas – mas que também deslizam para um grau considerável de tartamudez, de silêncio indizível. Estes deslizamentos são o que Deleuze chamou pick-up. Se o cut-up é um enfrentamento de textos recortados, o pick-up, ao contrário, é uma tartamudez, uma aporia, um assombro. Desde o nome deste volume há esta tensão que implode a realidade por meio de um transfundo que é feito de pick-ups, provocando no leitor o gesto da leitura íntima. Esta parte maldita, indizível, a meu ver, ocasiona a tensão poética que o volume necessita, permitindo que o discurso não se realize com totalidade e que esta poesia não ocupe um espaço de poder confortável. Há neste jogo com a realidade um incremento de memória imemorial, de edição do transfundo, de inversão das facilidades das palavras-placas dos estilos determinados, colocando sentidos inesperados em movimentos de múltiplos direcionamentos. O poema trazido como gesto cut-up é logo descentrado pela aporia pick-up. O curioso é que mesmo que sejam métodos supostamente contraditórios, aqui um não está anulando o outro. Algo como tocar a superfície profunda da pele. A partir destes acessos ao “estúdio realidade” que geram centros de significação, ocorre um atravessamento para os lugares da infância, da saudade, do amor, da morte, mas com a intimidade que solicita estes sentidos. O próprio Burroughs desaconselhava a utilização crua do método cut-up, quando afirmou que este havia se tornado um recurso em pleno uso na televisão – e, podemos acrescentar, nas redes sociais. Por isso é interessante o revigoramento que Reynaldo Bessa operacionalizou em seu Cisco no olho da memória com a apreensão de um tempo imemorial a partir de superfícies de comunicação. Como se tudo já estivesse lá, mas o lá poético é fenômeno do improvável: anotações epigramáticas do real em estado de deslizamento para a grande realidade.
Ricardo Corona é poeta e editor.
ALGUNS POEMAS DO LIVRO:
chorando em preto e branco,
como chorava a TV Colorado RQ
da minha infância colorida
madrugada fria:
o tique-taque do relógio
soa como um martelo
quebrando os ossos
do silêncio.
tarde quente
vento nenhum
árvores sem assunto
minha janela
batendo.
seria o vento
trazendo
o mar para dentro?
há um solo de sax em
All the way com a
Billie Holiday que é
como se alguém me tirasse
o cobertor no meio da
noite fria.
.
Reynaldo Bessa é músico, escritor e poeta. Já lançou cinco CDs. O mais recente com músicas suas sobre diversos poemas de autores como: Drummond, Leminski, Auta de Souza, Alphonsus de Guimaraens, Fabrício Carpinejar, Alice Ruiz, entre outros. Em 2008 lançou seu primeiro livro “Outros Barulhos – Poemas” (Prêmio Jabuti 2009 – Poesia). Em 2011 lançou seu livro de contos “Algarobas Urbanas”. (editora Patuá). Pela Rubra Cartoneira Editorial (Londrina-PR), publicou o seu terceiro livro, “Não tenho pena do poema” (o segundo de poesia). O autor escreve para sites, blogues, jornais sobre literatura, música e poesia. Têm contos, crônicas, poemas publicados em revistas, jornais, suplementos literários pelo Brasil e exterior. Blogue: www.algarobas.blogspot.com
Site: www.reynaldobessa.com.br
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