Borges por Augusto de Campos
Jorge Luis Borges por Augusto de Campos
Livro organizado pelo poeta brasileiro lança luz à obra poética do escritor argentino
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Era verão de 1984. Augusto de Campos estava de férias em Buenos Aires e tentou um golpe de sorte: discou ao telefone o número de ninguém menos que Jorge Luis Borges. Poucas horas depois, Augusto e Borges estavam sentados lado a lado na casa da Calle Maipu, travando uma conversa que marcaria para sempre a trajetória do brasileiro.
Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista é, de certa forma, o resultado tardio desse encontro. Três décadas depois daquela tarde em Buenos Aires, o livro que acaba de vir a lume apresenta, em uma edição limitada, por meio do delicado trabalho de tradução de Campos, um breve panorama da obra poética de Borges, mais conhecido – e adorado – por sua faceta de prosador.
Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista chega às prateleiras em uma tiragem para colecionador, limitada a 1 mil exemplares, todos eles numerados. É resultado de uma parceria da Terracota Editora com o Portal Musa Rara, pelo Selo Musa Rara.
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Apresentação de Omar Khouri
Era, então, Borges, o grande escritor dentre os viventes, naqueles inícios de 1984, quando o visitei em Buenos Aires. A seguir, lá também estiveram os Campos: Augusto, Lygia e Roland. Eu já conhecia Augusto, pessoalmente, desde fins de 1974 e, dez anos depois, havia entrado em contato com praticamente toda a sua obra publicada. Borges, octogenário, era figura que adentrava a lenda, com uma obra já construída, como prosador, comentador de literatura e poeta. De fato, Borges havia começado como poeta. Augusto de Campos: poeta (co-inventor da Poesia Concreta), teórico/crítico e tradutor de poesia, entendia a tradução como uma categoria da criação – tradução-arte, como veio depois a dizer. Dentro do projeto maior do Grupo Noigandres de elaboração de um paideuma (como o entendia Ezra Pound) em língua portuguesa, Augusto traduziu/recriou poetas fundamentais, com resultados surpreendentes, que podem ser considerados como parte integrante da tradição poética luso-brasileira. A questão maior colocada ao tradutor de poesia é a de encontrar equivalências morfo-semânticas na língua de chegada, para que desse afazer resulte um outromesmo poema. E ele construiu maravilhas: de Arnaut Daniel a Donne, Carroll, Mallarmé e Cummings, entre outros tantos. Borges, mesmo apreciado, não entrava, enquanto poeta, no centro das cogitações do tradutor-artista Augusto de Campos. O que não passava despercebido, porém, era a grandeza de Borges, em todos os campos em que operou: prosa (que fez sua fama no mundo), crítica, poesia. Por outro lado, Augusto sabia das dificuldades de se traduzirem poemas do espanhol para o português, dada a proximidade dos idiomas. Mas, dificuldades, antes de afugentar, instigavam o tradutor-poeta. E eis que o Borges-poeta passa a ser objeto do tradutor Augusto de Campos. O “Poema de los dones” / “Poema dos dons” dá uma medida do belo trabalho que fez. A poesia de Borges prima pela excelência artesanal do verso – que ele jamais deixou de praticar quando assumia a persona do poeta – e carrega todo o peso de uma inteligência desmedida e de uma mente enciclopédica. Augusto excele no trabalho realizado e homenageia, com essas traduções de 20 poemas de Jorge Luis Borges, uma América Latina maior.
Omar Khouri
São Paulo, janeiro de 2013.
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1 TRANSPOEMA
POEMA DOS DONS
Ninguém rebaixe a lágrima ou censura
Esta declaração da maestria
De Deus, que com magnífica ironia
Me deu mil livros e uma noite escura.
Desta terra de livros fez senhores
A olhos sem luz, que apenas se concedem
Sonhar com bibliotecas e com cores
De insensatos parágrafos que cedem
As manhãs ao seu fim. Em vão o dia
Lhes oferta seus livros infinitos,
Árduos como esses árduos manuscritos
Que pereceram em Alexandria.
De fome e sede (narra a história grega)
Morre um rei entre fontes e jardins;
Eu erro sem cessar pelos confins
Dessa alta e funda biblioteca cega.
Enciclopédias, atlas, o Oriente
E o Ocidente, eras, dinastias,
Símbolos, cosmos e cosmogonias
Brindam os muros, mas inutilmente.
Lento nas sombras, a penumbra e o nada
Exploro com o báculo indeciso,
Eu, que me figurava o Paraíso
Como uma biblioteca refinada.
Algo, que nomear ninguém se atreva
Com a palavra acaso, arma os eventos;
Outro já recebeu noutros cinzentos
Ocasos os mil livros e esta treva.
Ao errar pelas lentas galerias
Chego a sentir com vago horror sagrado
Que sou o outro, o morto, tendo dado
Os mesmos passos pelos mesmos dias.
Qual de nós dois escreve este poema
De um eu plural e de uma mesma mente?
Que importa o verbo que me faz presente
Se é uno e indivisível o dilema?
Groussac ou Borges, olho este querido
Mundo que se deforma e que se apaga
Em uma pálida poeira vaga
Que se parece ao sonho e ao olvido.
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POEMA DE LOS DONES
Nadie rebaje a lágrima o reproche
esta declaración de la maestría
de Dios, que con magnífica ironía
me dio a la vez los libros y la noche.
De esta ciudad de libros hizo dueños
a unos ojos sin luz, que sólo pueden
leer en las bibliotecas de los sueños
los insensatos párrafos que ceden
las albas a su afán. En vano el día
les prodiga sus libros infinitos,
arduos como los arduos manuscritos
que perecieron en Alejandría.
De hambre y de sed (narra una historia griega)
muere un rey entre fuentes y jardines;
yo fatigo sin rumbo los confines
de esta alta y honda biblioteca ciega.
Enciclopedias, atlas, el Oriente
y el Occidente, siglos, dinastías,
símbolos, cosmos y cosmogonías
brindan los muros, pero inútilmente.
Lento en mi sombra, la penumbra hueca
exploro con el báculo indeciso,
yo, que me figuraba el Paraíso
bajo la especie de una biblioteca.
Algo, que ciertamente no se nombra
con la palabra azar, rige estas cosas;
otro ya recibió en otras borrosas
tardes los muchos libros y la sombra.
Al errar por las lentas galerías
suelo sentir con vago horror sagrado
que soy el otro, el muerto, que habrá dado
los mismos pasos en los mismos días.
¿Cuál de los dos escribe este poema
de un yo plural y de una sola sombra?
¿Qué importa la palabra que me nombra
si es indiviso y uno el anatema?
Groussac o Borges, miro este querido
mundo que se deforma y que se apaga
en una pálida ceniza vaga
que se parece al sueño y al olvido
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Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista
Tradução e Organização: Augusto de Campos
Preço: R$ 39,00
Edição: Terracota – Selo Musa Rara
Páginas: 100
Lançamento e debate: dia 16 de março, a partir das 14h30, na Casa das Rosas [com direito a um bate-papo entre Augusto de Campos, Omar Khouri e a mediação de Edson Cruz, editor do selo Musa Rara]
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17 março, 2013 as 11:21
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