Poesia premiada
Ana Martins Marques:
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Ana Martins Marques (Belo Horizonte, 1977) é doutora em Literatura Brasileira Comparada pela UFMG. Foi contemplada duas vezes com o Prêmio Cidade de Belo Horizonte de Literatura. A vida submarina (2009) reúne os poemas premiados. Da arte das armadilhas (S. Paulo: Companhia das Letras, 2011) recebeu o Prêmio Alphonsus de Guimaraens, da Fundação Biblioteca Nacional.
De prêmio em prêmio ela foi ganhando apoio da crítica e dos leitores. É fácil encontrar loas e boas à sua poesia. O livro de estreia foi lançado pela editora Scriptum, de Belo Horizonte, e o segundo, pela renomada Companhia das Letras, bem como o mais recente, intitulado O livro das semelhanças (2015).
Em A vida submarina os poemas são um amontoado de clichês e observações ingênuas sobre a realidade, anotados em linguagem prosaica. O leitor percebe que há um ou outro verso, no máximo uma ou outra estrofe, em que a poetisa acerta a mão. Mas logo vê-se assolado por um tsunami de bobagens escritas com a espontaneidade sincera e infantil dos ingênuos.
Consideremos, por exemplo, a pretensa ironia de “Margem”, um pretenso poema:
No final da página
como no final do mundo antigo
há um despenhadeiro.
Embora os que leem prosa em geral
se arrisquem mais
porque chegam quase à beira do abismo
cuidado ao chegar à borda do poema
A poetisa borda e reborda e não sai da borda do que poderia ser um poema. Mas é papo furado. É prosa horrorosa. Falta-lhe ritmo, imagens inesperadas e alguma ideia. Qualquer uma que fosse. De fato, a relação do despenhadeiro como final da página, tal como no mundo antigo, poderia render uma estrofe melhor, se vencesse a banalidade da comparação, dando um salto qualitativo resultante do desvio da norma, como apregoa Jean Cohen. Mas não: Ana Martins Marques pisa e repisa a mesmice, numa pasmaceira sem fim. A segunda estrofe quer ser coloquial e só consegue ser sem graça. O leitor esforça-se para encontrar poesia onde só há prosa. Pior: reles prosa. O final do poema não procede, já previne: “cuidado ao chegar à borda do poema”. Pois é: não tivemos cuidado, não encontramos o poema e demos com os burros n’ água.
Numa das partes do livro intitulada “Arquitetura de interiores”, a poetisa cisma de fazer poesia para a sala, a copa, a cortina, a cortina, a porta, a cozinha, o telefone, a persiana, o guarda-roupa, etc. O resultado não poderia ser mais pífio. Vejamos o poema “Sala”:
na sala decorada
pela noite
e pelo imenso desejo,
nossas xícaras
lascadas
Sala decorada pela noite e pelos desejos é tão simploriamente bobo que causa vergonha alheia. O leitor, ao final do poema, está se sentindo xícara. Ou seja, está lascado. Eis o mimetismo que a poetisa consegue atingir. Consideremos, agora, leitor, “Batata quente”:
Se eu te entregasse agora o meu amor
aceso como ele está,
como ele está, pesado,
você o trocaria rapidamente de mão,
você o guardaria um pouco na esquerda,
um pouco na direita,
por quanto tempo antes de o passar adiante?
Vamos e venhamos, “Batatinha quando nasce” tem mais ritmo, imagens e ideias. Outro mimetismo: o poema fala de batata quente e ele próprio é a batata quente. O leitor que se vire. Agora vejamos “Reparos”:
Algumas coisas
quando se quebram
são fáceis de consertar:
uma xícara lascada
uma estatueta de gesso
um sapato velho
uma receita que desanda
ou uma amizade arruinada.
Ainda que guardem
as marcas do remendo,
é possível que essas marcas
tenham um certo charme
como algumas cicatrizes.
Mas experimente consertar
um poema que estragou
Como percebemos, a poetisa tem uma quedinha por xícaras lascadas… O leitor que se cuide. Estamos aqui diante de um poema de autoexorcismo, sem dúvida. Uma dica simples e óbvia como sua poesia: a poetisa deveria ler o que escreve. E jamais publicar o que escreve. Já que está lascado.
O aborrecimento prossegue em Da arte das armadilhas. O lugar comum, mais prosaísmo e coloquialismo insossos, são a tônica do volume. Abre-se o livro e a poetisa vem com o “Açucareiro”:
De amargo
basta
o amor
Agridoce,
ela disse
Mas a mim
pareceu
amargo
Falta de expressividade quase absoluta. Estou pasmo. Trocadilho rude. Três estrofes competindo entre si: qual delas esgota mais rapidamente a paciência do leitor? Por ser o poema que abre o livro, não deixa de ser emblemático, não é mesmo, leitor?
Mas ele não está só. Encontra companhia em “Capacho”, que cito, tal como os anteriores, inteiramente:
Home
sweet
rua
Pronto. É só isso o poema: um trocadilho de capacho. O bom leitor sente-se expulso das páginas do livro. Outro: “Cinema”:
Encontramos na rua
uma fileira de cadeiras
de um velho cinema
levamos para casa
colocamos na varanda
passamos toda a tarde
bebendo e fumando
assistindo passar
um dia qualquer
Resumo da ópera: nada mais nada igual a zero. Mas, como diz o ditado popular, “desgraça pouca é bobagem”. Como a poetisa gosta de clichês, ela segue atirando pra todo lado. Vejamos agora o que ela diz em “Teatro”:
Certa noite
você me disse
que eu não tinha
coração
Nessa noite
aberta
como uma estranha flor
expus a todos
meu coração
que não tenho
O leitor quer mais? Quer se lascar por completo? Pois considere seu mais recente lançamento: O livro das semelhanças. O volume é dividido em quatro partes, precedidas pelo poema “Ideias para um livro”. Bem, quem conhece bem a poetisa – ou mesmo quem não a conhece – ao ler o tal poema, já sabe que vem bomba pela frente. Transcrevo-o:
- I.
Uma antologia de poemas escritos
por personagens de romance.
- II.
Uma antologia de poemas-
epitáfios
- III.
Uma antologia de poemas que citem
o nome dos poetas que os escreveram
- IV.
Uma antologia de poemas
que atendam as condições II e III
- V.
Um livro de poemas
que sejam ideias para livros de poemas
- VI.
Este livro
de poemas
Parece resultado de exercício feito em oficina de criação de poemas com adolescentes como público-alvo. Que coisa mais simplória. Pra não dizer beócia.
Bem, citemos as quatro partes: “Livro”, “Cartografias”, “Visitas ao lugar-comum” e “O livro das semelhanças”. Na primeira parte há poemas para a capa do livro, o nome do autor, o título, a dedicatória, a epígrafe, e assim por diante. Pra encurtar a ladainha transcrevo “Nome do autor”:
Impresso
como parece estranho
o mesmo nome
com que te chamam
Pois é: é isso. Você nem acredita, não é, leitor? A poetisa busca ser natural. Precisa ler mais Bandeira, Pessoa… Essas leituras básicas para qualquer cidadão de bem com a poesia.
Na segunda parte, aparece a surradíssima metáfora do mapa, que o Borges usou, explorou e esgotou magistralmente. As sobras respingam puídas e desbotadas em Ana Martins Marques. Vejamos a originalidade e beleza ímpar deste gesto entre amantes distantes um do outro:
Você fez questão
de dobrar o mapa
de modo que nossas cidades
distantes uma da outra
exatos 1720 km
fizessem subitamente
fronteira
Ou este, em que o eu lírico metaforiza o mapa como o outro que falta: ai que lindo: “Sempre acabo tomando o caminho errado / que falta me faz um mapa / que me levasse pela mão”. Sem outros comentários.
A terceira parte é composta por 14 poemas curtos. Nem por isso a tragédia é menor. A poetisa busca reciclar lugares-comuns, mas sua taxa de criatividade é próxima do zero. Cito dois deles:
Amar
Profundamente
mas testar
volta e meia
se ainda
dá pé
Sem risco algum de acertar, ela repete:
Correr riscos
e ao fim
arfante
da corrida
voltar-se
para avaliar
o traçado
Na quarta e última parte estão os poemas que podemos considerar bons, como no drummondiano-gullariano, sem título:
Aqueles que só conhecem o mar pelo rumor que faz um livro
quando tomba
os que só sabem da floresta o que ensina o farfalhar das páginas
os que vêem o mundo como um grande volume ilustrado
no entanto sem legendas sem índices remissivos sem notas explicativas
os que conhecem as cidades apenas pelo nome
e acham que cabe no nome muitas coisas
inclusive certas ruas vazias de madrugada
as casas prestes a serem demolidas
os mesmos talvez que pensam que um corpo pesa tanto
na cama quando no pensamento
aqueles cujos nós para quem o desejo
não é prenúncio mas já a aventura
os que se reconhecem na tristeza
das piscina vazias à beira-mar
Mas, fiel a si mesma, a poetisa erra a mão na quase totalidade dos outros poemas. Como neste, igualmente sem título:
É chegado o afastamento
Pela força do desejo
o longínquo
aproxima-se
recua
o próximo distancia-se
e pouco a pouco
avizinha-se a distância
tão cedo era tarde demais
Percebe-se que o lugar-comum, irmão do senso comum, não desgruda da poetisa. Ou “Faca”, escrito ao modo de um Cabral diluído, rarefeito, vilipendiado:
Como chamar faca
tanto aquela
enfiada na fruta
quanto aquela
enfiada no peito?
como chamar fruta
tanto o sol polpudo da laranja
quanto a lua doce de lichia?
como chamar peito
tanto o peso oco do meu coração
quanto o peso oco do seu coração?
.
Ana Martins Marques marca bobeira. Em O livro das semelhanças, continua pecando pelo óbvio: nada tem a dizer e nem ao menos conhece a linguagem para dizer nada. Enfim: exaure. Dá nos nervos. Cansa.
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Amador Ribeiro Neto nasceu em Caconde-SP, 1953, e está radicado em João Pessoa-PB. Mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP e doutor em Semiótica pela PUC/SP. Autor de Lirismo com siso – notas sobre poesia brasileira contemporânea (crítica; 2015), Ahô-ô-ô-oxe (poesia; 2015), Barrocidade (2003). Escreve às sextas-feiras emwww.augustapoesia.wordpress.com. E-mail: amador.ribeiro@uol.com.br
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