outro do mesmo augusto poeta
Em 1953, Augusto de Campos publica poetamenos, livro anterior ao lançamento da Poesia Concreta, que a antecipa em muitos procedimentos, como quebra da sintaxe tradicional, espacialização vocabular, condensação, termos substantivos, uso de variadas fontes, inclusive coloridas, etc. Em 2015, com outro (São Paulo: Perspectiva) ele reafirma que seu trabalho continua incorporando cores, variados tipos de fontes tipográficas, rompimento com o verso tradicional e palavras organizadas em estruturas gráfico-espaciais. Um arco une as duas obras, distantes entre si 62 anos. Apenas por este dado, dentre tantos outros, fica evidente que o poeta sabe, há décadas, o que sempre quis fazer. E o fez e o faz com admirável desempenho.
Não somente estes dois livros de sua obra complementam-se: eles desenham o plano poético por onde os outros títulos transitam, com linguagens e projetos gráfico-formais próximos. Consideremos suas traduções. Convertidas em “intraduções” – dada a singularidade que encerram, numa parceria legítima com o poeta traduzido –, estão presentes em seus livros desde 1974, quando publicou “intradução”, de Bernart de Ventadorn, a partir de um poema escrito há exatos 800 anos: “se eu não vejo / a mulher / que eu mais desejo / nada que eu veja / vale o que / eu não vejo”. Desde então, o poeta tem se dedicado a inserir em seus livros poemas da própria feitura, e outros, ainda que sob fragmentos, a quatro mãos.
Encontramos o mesmo procedimento em despoesia (1994), de onde destacamos “nuvem-espelho para sinisgalli”, poeta italiano conhecido como “poeta engenheiro”, tal sua engenhosidade. No preto da página fontes vazadas e fontes cheias, em reflexão, configuram o isomorfismo de nuvem e espelho numa noite de corvos. Não há como não vibrar com as soluções do poeta brasileiro. Em “so l(a”, de cummings, do mesmo volume, o branco da página destaca fontes em dois tons de verde, iconizando as folhas que caem e, metaforicamente, a solidão do inverno.
As intraduções também aparecem em não (2003), de onde selecionamos “rã de bashô”, que toma o célebre poema do grande haicaísta japonês, recriando-o numa estrutura de formas, cores, sons e movimentos instigantemente interligados. Igualmente “dodeschoenberg”, que se delineia dentro de uma das marcas da poesia augustiana: o poema-linguagem-indagação. No recente outro, este procedimento aparece em dois poemas. Em “isto”: “? // um psiu de pedra psi // que esquiso aqui este // quisto esquisito é // poesia ou sou eu que ex // isto //?”. E em “d?vida”: “que / poesia / poderia / dizer / a / d vida / d / ser”.
A intradução, presente no livro recém-lançado, vem acompanhada de “outradição”, novo modo de parceria. Modo que tanto pode ser a recriação de autores de língua portuguesa – como Euclides da Cunha, Fernando Pessoa, Vieira – como o resgate de uma fala-protesto da cantora Erykah Badu. Ou mesmo um poema inspirado em Maiakóvski, Magritte e na civilização maia – que dialoga, na forma, com o poema “contemporâneos”, retirado de uma afirmação de Mallarmé: “(…) prefiro, diante da agressão, retorquir que alguns contemporâneos não sabem ler – a não ser no jornal”. O poema de Augusto, grafado em fontes que decrescem, verticalmente, ao longo da página, diz: “osc/ont/emp/ora/neo/snã/osa/bem/ler”. Temos, entre outras, estas possibilidades de leitura: os contemporâneos, neo não, não sabem, sabem, sabem bem, bem ler. A disposição da frase na folha, à semelhança de um diagrama de médico-oftalmológico, exige que o leitor leia do grande ao miúdo. Mas, adentrando filigranas da linguagem.
Temos um “quadro” abstrato em “occhiocanto (omaggio a scelsi 2)”, cujo título remete a “olhoumúsica”, na acepção de ver-música, tão em voga com as novas mídias. Com o advento do videoclips, Décio Pignatari costumava dizer que já não se perguntava mais: “você ouviu a nova música de fulano?”, mas sim: “você viu a nova música de fulano?”. Augusto parece ratificar a observação do amigo.
outro está dividido em quatro sessões: “outro/poemas”, que reúne a poesia do próprio Augusto; “intro/intraduções”, com fragmentos de poetas traduzidos por ele e sob suas intervenções visuais; “extro/outraduções”, que transforma em imagens textos de poetas, prosadores e artistas plásticos; “clip-poemas 2”, com poemas para serem acessados pela internet. Há prefácio, notas elucidativas e “deserrata” – a bem da verdade, o poema que encerra o livro. E que reverencia o famoso neologismo pignatariano vler. Diz o poema de Augusto, escrito em fonte à la braille: “on/de/se//lê//le/ia/se//le/ia/se//vê”. Está dito: um livro para ler e ver.
O poema “humano”, estruturado com hexagramas do I Ching, é um convite ao olhar, ao silêncio e ao manuseio das mãos – para ser melhor fruído. Sabedoria oracular e filosofal parecem conviver num yin-yang de infindável bumerangue poético.
O pensamento valeryano, em especial no quesito inspiração poética, professa que o poeta não precisa ser inspirado, mas deve levar o leitor a sentir-se como tal. Ou seja, o poeta deve ter consciência de seu processo criador: “Sentir não significa tornar sensível – e menos ainda, belamente sensível…”, nos ensina, grifando os termos essenciais da sentença. Para ele, “apoesia é uma arte da linguagem”. A literatura só lhe interessa “na medida em que cultiva o espírito em certas transformações – aquelas nas quais as propriedades excitantes da linguagem desempenham um papel fundamental”.
Tendo em seu horizonte a poesia e o pensamento valeryanos, Augusto toma o aforismo “Ser poeta, não. Poder sê-lo”, e produz o poema “poder ser”: “não/ser/poe/tap/ode/rse/rpo/eta”. Não, contra, des, anti. Outra poesia. Aquela que contraria “a poesia dita profunda”, para nos valermos de outro mestre, João Cabral. Enfim: não ser poeta; poder ser poeta.
A série de poemas intitulada “tvgrama”, iniciada no livro despoesia (1994) com “tvgrama1 (tombeau de mallarmé)” e “tvgrama2 (antenae of the race)”, prossegue com “tvgrama3” e “tvgrama4 erratum”, em outro.
Se “tvgrama1” diz “ah mallarmé / a carne é triste / e ninguém te lê / tudo existe/ pra acabar em tv”. No recente “tvgrama4” ele dirá: “ah mallarmé / a poesia resiste / se a tv não te vê / o cibercéu te assiste / em quick time e fly / já pairas sobre os sub / tudo existe / pra acabar em youtube”. Antenado, o poeta vai da era da TV à da Internet. Sempre insistindo na poesia que dialoga com Mallarmé.
Em “odi et amo”, de Catulo, insere o vocábulo “amo” dentro de “odeio”, de tal forma que o poema funciona como um oroboro, num movimento continuado e infinito. A disposição gráfica das letras do poema brinda o leitor com um possível título “ode”.
Ao escolher Catulo, defensor de uma poesia com termos, temas e formas não convencionais, e por isto mesmo fortemente criticado por Cícero, Augusto traz à tona o velho embate entre conservadorismo e vanguarda. Com sutileza. No fundo negro da página as palavras odeio e ode destacam-se em verde. E “amo”, em vermelho. Ambas as cores são tomadas da capa do livro: sob fundo verde, nome do poeta e da obra destacam-se em vermelho. Assim, podemos ler psicanaliticamente: amar como verso de odiar. E, semioticamente: vanguarda como verso de conservadorismo.
O poema “brazilian ‘football’”, escrito em 1964, ganha novo layout em 2014, ano da Copa: “1958 – goal ! goal! goal! / 1962 – goal ! goal! goal! / 1964 – gaol! gaol! gaol!”. O trocadilho se faz entre goal (gol) e gaol (prisão). Segundo Augusto, ao revisitar o poema teve como objetivo fazer uma “desomenagem” ao golpe de 64, bem como “aos golpistas de todos os matizes do presente, chupins desmemoriados do poder”. Este poema, como outro seu, “greve” (1962), investe na linguagem poética engajada, protestando dentro da máxima maiakovskiana – aposta ao plano piloto da poesia concreta –: “sem forma revolucionária não há arte revolucionária”.
O poema “ter remoto”, desde o título remete o leitor ao processo estruturante do poema “terra”, de Décio Pignatari. A fonte gráfica verde, arredondada e espelhada, sobre o fundo azul, remete ao movimento do bater de asas da borboleta. O poeta brinca com as letras, fazendo delas o corpo da borboleta. Mais, ainda: remetendo a outro poema de Décio, “borboletra”. Além de estabelecer elo direto com “borboleta-pó de khliébnikov” (de despoesia), montado com fontes pontilhadas. Mais tarde, em “borboleta de khliébnikov II”, do livro não, o poema reaparece, agora sob forma caligráfica e colorida. As letras manuscritas conferem dramaticidade ao voo cego da borboleta através do espelhamentos da letra /c/ – ícone do bater de asas contra a vidraça. O mesmo movimento que reverbera sonora e visualmente em “ter remoto”.
Em “tântaro”, quatro substantivos trissilábicos, proparoxítonos, rimando toantemente entre si, são colocados em ordem alfabética. Esta aproximação sonora e visual refere-se, nos três primeiros vocábulos, a elementos naturais e, no quarto, a um componente químico. Cito o poema: “cântaro / pântano / sândalo / tântalo”. O neologismo do título mescla vaso, lama, perfume e metal numa argamassa compacta. Por outro lado, se considerarmos o mito de Tântalo, cântaro e sândalo podem referenciar o mundo dos deuses, e pântano, o de Tântalo, que nele foi lançado como punição divina.
Augusto de Campos toma a palavra como matéria concreta, e a conforma a seus quereres – que são muitos, ao longo de seis décadas de poesia. Sua produção é ensinamento de como usar a palavra com rigor, parcimônia e sensibilidade – característicos complementares. Um poeta digital avant la lettre, cuja obra é negação da facilidade. E confirmação da felicidade de criar. Lê-lo é aceitar o desafio de ser provocado a cada poema, a cada livro. Minimalista ao grau zero da palavra, toma-a em suas dimensões mais radicais de música, imagem e ideia. Sem concessão, cutuca a onça retrô da poesia com vara curta. Feliz dono de admirável erudição, assusta acomodados e deleita inquietos. Vem operando um tsunami, não somente na poesia de língua portuguesa, mas, segundo vários críticos, em toda a poesia contemporânea universal.
outro é fascinante. É o seguinte e o diverso. Do mesmo augusto. Do outro augusto. Do sempre augusto e desafiador Augusto.
[Publicado pelo Suplemento Literário de Minas Gerais, Belo Horizonte, março/abril 2015, edição número 1.359, p. 23-27].
.
Amador Ribeiro Neto nasceu em Caconde-SP, 1953, e está radicado em João Pessoa-PB. Mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP e doutor em Semiótica pela PUC/SP. Autor de Lirismo com siso – notas sobre poesia brasileira contemporânea (crítica; 2015), Ahô-ô-ô-oxe (poesia; 2015), Barrocidade (2003). Escreve às sextas-feiras em www.augustapoesia.wordpress.com. E-mail: amador.ribeiro@uol.com.br
1 outubro, 2015 as 13:26
5 outubro, 2015 as 0:47