O medo que mora em nós
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O medo que mora embaixo da cama (Globinho, 2014), escrito por Mariza Tavares e ilustrado por Nina Millen, parece, numa primeira leitura, contar uma história bastante despretensiosa e trivial sobre um menino que tem medo do escuro. Mas, essa trama “singela” pode vir a instigar uma importante reflexão sobre o medo.
Segundo o estudioso francês Jean Delumeau, “apesar de seu caráter natural, o medo foi, durante muito tempo, ou ocultado, ou culpado pelo discurso que a nossa civilização sustentou a seu respeito”[1], pois ele estava relacionado a um sentimento baixo de covardia, numa sociedade que valorizava a coragem militar.
Aos poucos, contudo, o medo foi sendo visto como algo intrínseco (não só) ao ser humano e hoje, pode-se dizer, as pessoas confessam com naturalidade seus medos e inquietações.
Quando se fala com as crianças, sobretudo, quando elas vão dormir e se apaga a luz, afirma-se categoricamente que não é preciso ter medo, e associa-se a ausência desse sentimento a um ato nobre de bravura e coragem, ou seja, ainda se nega às crianças uma experiência tão natural, principalmente à noite, quando se convive com a escuridão.
Não quero dizer com isso que se deva estimular o medo nos pequenos, mas talvez entendê-lo seja um bom começo.
Segundo Delumeau, é possível que o medo da noite dure tanto tempo quanto os homens, pois “é preciso reconhecer que o acúmulo de perigos que a humanidade conheceu ao longo do tempo, durante a noite, fez nascer um medo quase natural da escuridão; e isso principalmente porque a privação da luz diminui a chama dos ‘redutores’ da atividade imaginativa”.[2]
No livro de Mariza Tavares, a atividade imaginativa do menino João parece funcionar a pleno vapor no escuro: “Sozinho no escuro, João fica aflito./ O sono não vem, somente a certeza/ de que no seu quarto se esconde um bicho / capaz de fazer qualquer malvadeza.”
De fato há que se concordar com Shakespeare quando ele afirma, na sua tragédia Rei Lear que “o olho da noite é escuro, uma órbita vazia”, imagem que Nina Millen parece captar muito bem na sua ilustração.
A literatura sempre explorou o medo noturno e não é à toa que, muitas vezes, ao se descrever um acontecimento trágico ou amedrontador, começa-se afirmando em tom lúgubre que era noite quando a coisa aconteceu, como lembra o estudioso francês.
O escuro também carrega consigo outro medo, o medo do desconhecido. No escuro, aquilo que conhecemos e que nos rodeia se torna um estranho e uma ameaça. Em O medo que mora embaixo da cama, o velho macaquinho de brinquedo enrolado no cobertor, por exemplo, transforma-se, com a falta de luz, num “monstro peludo de olho arregalado”.
Mariza Tavares não explora o medo que surge do sonho ou do inconsciente. Ao contrário, é de olhos abertos, mas no escuro, que o menino João vive seu “pesadelo” e é colocado diante de todos os seus medos e temores, os quais desaparecem à medida que identifica o que está ao seu redor. É vencido pelo cansaço e pela escuridão, que João sonha com um mundo leve e lúdico: “O resto da noite é de sonho./ João brinca até dormindo./ Pula, corre, cai, levanta./ Quando acorda está sorrindo”.
[1] DELUMEAU, Jean. “Medos de ontem e de hoje”. In NOVAES Adauto (Org.). Ensaios sobre o medo. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2007, p.40.
[2] Ibidem, p. 43.
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Dirce Waltrick do Amarante é autora de Pequena Biblioteca para crianças: um guia de leitura para pais e professores (Iluminuras). E-mail: dwa@matrix.com.br
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