João Cabral e a Literatura Brasileira
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Muito se fala na maciça presença da Espanha na obra poética de João Cabral de Melo Neto. E com razão: a Espanha comparece em 129 de seus poemas, e essa constante presença tem sido, cada vez mais, objeto de teses, ensaios e livros.
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Exatamente por isso – considerando a quantidade e a qualidade de estudos hispanizantes dedicados ao poeta – talvez, agora, fosse conveniente mudar o ângulo da investigação, e centrá-lo num ponto praticamente inexplorado: quais as marcas da literatura brasileira na produção de Cabral? Diz-se, com alguma razão, que ele apenas superficialmente referiu-se às letras brasileiras, e nem sempre de modo favorável. Ainda assim, uma análise minuciosa – que não desenvolveremos – poderia apontar novos caminhos para a compreensão da poesia cabralina, independentemente do notório intercâmbio por ele desenvolvido com a cultura espanhola.
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Apresentaremos, resumidamente, as principais conexões de João Cabral com a literatura brasileira, estabelecendo, de início, uma tipologia dessas relações, a partir de quatro polos distintos: 1) as dedicatórias; 2) as epígrafes; 3) os títulos de poemas; 4) as referências e alusões no interior dos textos.
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Esses grandes eixos poderiam, por exemplo, ser submetidos a uma rigorosa investigação diacrônica. Com o passar do tempo, mantêm-se, aumentam ou diminuem as presenças brasileiras em títulos e referências textuais? Os nomes inicialmente citados persistem ao longo da obra? Há grandes homenageados? Ocorrem desaparecimentos súbitos? Tudo isso um levantamento cronológico cuidaria de pôr em relevo.
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Para retornarmos à nossa tipologia, salientemos que, no interior de cada categoria, poderíamos estabelecer uma tripartição de juízo de valores emitidos pelo autor, a saber: comentário neutro, positivo, negativo. Nem sempre citação implica endosso; diríamos mesmo que a neutralidade e a crítica, velada ou explícita, acabam prevalecendo.
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1) As dedicatórias
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Aqui, cabe distinguir se as dedicatórias reportam-se a um poema ou, mais prestigiosas, a um livro inteiro; se estampam apenas um protocolo cordial, ou se estão acompanhadas de alguma motivação literária, para além da simples amizade.
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Dos vinte livros do poeta[i], nada menos do que catorze são dedicados. Desses, porém, somente quatro apresentam algo além do nome do homenageado. São eles:
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O engenheiro, de 1945 –“A Carlos Drummond de Andrade, meu amigo” (p. 42); O cão sem plumas, de 1952 – “A Joaquim Cardozo, poeta do [rio] Capibaribe” (p. 80); A educação pela pedra, de 1966 – “A Manuel Bandeira, esta antilira para seus oitent´anos” (p. 308); Agrestes, de 1985 – “A Augusto de Campos [segue-se um poema]” (p. 485).
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Na primeira dedicatória, ao externar seus vínculos de amizade, não é impossível que, de modo consciente ou não, houvesse também, por parte de Melo Neto, um desejo de legitimar sua própria literatura através da afirmação de vínculos mantidos com Carlos Drummond de Andrade, o nome mais importante da poesia brasileira do século XX. João Cabral, aliás, nunca escondeu sua dívida estética para com Drummond, ainda que, alguns anos depois, praticamente rompesse relações com ele, tanto poética quanto pessoalmente.
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Relações que preservou a vida inteira com o segundo homenageado, Joaquim Cardozo, também, como João Cabral, nascido na cidade do Recife, e igualmente cantor da paisagem nativa: por isso foi chamado de “poeta do Capibaribe”.
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Na mesma cidade nasceu o terceiro poeta, Manuel Bandeira, primo de João Cabral, e, como Joaquim Cardozo, de uma geração anterior a Melo Neto. Manuel Bandeira, porém, cedo mudou-se para o Rio de Janeiro, e fala relativamente pouco da terra natal, o que, para um regionalista ferrenho à moda de Cabral, deveria ser quase uma ofensa. Além disso, a poesia de Bandeira é considerada um dos pontos mais altos do lirismo brasileiro, enquanto Melo Neto rejeita em seus versos a presença explícita do sentimento. Daí, portanto, que não deixe de ser metalinguísticamente irônica e depreciativa a dedicatória “A Manuel Bandeira, esta antilira para seus oitent´anos” – a rigor, uma antidedicatória.
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Situação oposta à derradeira, dirigida ao poeta concretista Augusto de Campos, frente a quem João Cabral declara divergências que não escondem afinidades, enquanto, diante de Bandeira, adotou um tom aparentemente neutro para sublinhar radical diferença (a “antilira”).
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Pelo pouco usual procedimento de uma dedicatória em forma de poema, vale a pena transcrever trechos desse texto, em que Melo Neto eleva a arte de Augusto de Campos a um patamar superior ao da poesia que ele próprio pratica:
Você aqui reencontrará
as mesmas coisas e loisas
que me fazem escrever
tanto e de tão poucas coisas:
…
Nada disso que você
construiu durante a vida;
muito aquém do ponto extremo
é a poesia oferecida
a quem pode, como a sua,
lavar-se da que existia,
levá-la à pureza extrema
em que é perdida de vista;
…
Por que é então que este livro
tão longamente é enviado
a quem faz uma poesia
de distinta liga de aço?
Envio-o ao leitor contra,
envio-o ao leitor malgrado
e intolerante, o que Pound
diz de todos o mais grato;
…
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Cabral confessa-se redundante (escrever tanto de tão poucas coisas), declara que a obra de Augusto é mais radical do que a sua (situada “aquém do ponto extremo”), e diz desejar leitores exigentes e contestadores, personificados em Augusto de Campos e Ezra Pound. O suposto confronto, sob o manto da modéstia, era de tal modo autodepreciativo, que, posteriormente, Augusto de Campos replicaria:
e …não encontro nem
palavras para o ..abraço
senão .as ..do …aprendiz
……………………………………………………………………….
nunca houve um leitor
contra mais a . favor[ii]
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Quanto às demais dedicatórias de livros, em que nada consta além do nome do agraciado, observamos que a grande maioria contempla poetas, sejam eles de gerações anteriores, como Augusto Frederico Schmidt, Murilo Mendes, Vinicius de Morais e (outra vez) Carlos Drummond de Andrade, sejam da geração de Cabral: Lêdo Ivo e Antônio Rangel Bandeira.
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Com exceção de Murilo Mendes, cuja dicção surrealista reverberou no livro de estreia cabralino, Pedra do sono (1942), os demais escritores pouco têm a ver com a poesia de Cabral, alguns deles sendo considerados seus antípodas – é o caso dos líricos Schmidt e Vinicius de Morais. Ambos, porém, figuras importantes na biografia do poeta. Schmidt pagou do próprio bolso a impressão do segundo livro de João Cabral, O engenheiro ; ironicamente, financiou um tipo de poesia que iria destronar a sua própria. Vinicius de Morais, na avaliação de João Cabral, era o poeta brasileiro de maior talento – desperdiçado, porém, nos descaminhos do lirismo amoroso. Talvez para provocar o amigo, Melo Neto tenha-lhe dedicado uma de suas mais cerebrais e complexas composições: Uma faca só lâmina (1956). Lêdo Ivo, escritor de gama variadíssima de recursos, foi amigo de João Cabral desde a adolescência e, à revelia, é considerado representante-mor da “Geração de 45”, estigmatizada pelos historiadores literários, e na qual, cronologicamente, João Cabral se insere, apesar de sempre haver sublinhado distâncias frente aos projetos estéticos e ideológicos do grupo de 45.
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A única dedicatória feminina – et pour cause – encontra-se no derradeiro livro de Cabral, Sevilha andando (1989): “Para Marly” (p. 598) – trata-se da poetisa Marly de Oliveira, sua segunda esposa.
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Curiosamente, João Cabral revelava-se, em termos proporcionais, menos pródigo na dedicatória de poemas do que na de livros. Em sua obra, composta por centenas de poemas, apenas 21 são dedicados. Nesse pequeno contingente, prevalece o protocolo da simples amizade, destituída de expressa sintonia literária. Eventualmente um adendo “justifica” a dedicatória; outras vezes, ela se fundamenta na região de nascimento do homenageado. Com efeito, A escola das facas (1980) é composta apenas de textos relativos ao estado natal do poeta, Pernambuco. Alguns desses poemas consignam dedicatórias a familiares, amigos ou escritores pernambucanos.
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Outros exemplos da parcimônia cabralina: apesar de ser o poeta mais valorizado pela crítica e pelos estudos universitários na segunda metade do século XX, um único ensaísta mereceu-lhe dedicatória: Eduardo Portella (que, aliás, além de estudar em Pernambuco, residiu na Espanha, como João Cabral). Já a um primo do poeta, o escritor Felix de Athayde, não coube sequer um poema inteiro, mas apenas uma parte: a ele foram dedicados 32 dos 128 versos de “O sim contra o sim”, de Serial (1961).
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2) As epígrafes
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Um segundo eixo revelador da presença da literatura brasileira na obra de João Cabral são as epígrafes; aqui, as incidências são modestíssimas. É certo que o recurso, em geral, não abunda em sua poesia: no todo, apenas onze vezes. Em nove delas, porém, a procedência é estrangeira. As brasileiras acolhem os assíduos Drummond de Andrade e Vinícius de Morais.
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Do primeiro, Cabral se vale do trecho inicial de um famoso poema, “Quadrilha” [iii] (1930): “João amava Teresa que amava Raimundo / que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili”.
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O fragmento, extraído de uma composição de natureza humorística, é subtraído desse contexto e serve de epígrafe ao segundo livro de João Cabral, intitulado “Os três mal-amados” (1943), integrado por monólogos alternadamente proferidos por João, Raimundo e Joaquim, cada um deles representante de determinada maneira de vivenciar o impacto amoroso e de reelaborá-lo em linguagem poética. Portanto, o texto de Drummond, mais do que mera epígrafe, converte-se numa espécie de mote, a ser glosado diversamente pelos três personagens.
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A epígrafe de Vinícius provém do algo enigmático poema”Retrato, à sua maneira”[iv], encerrado pelo verso “Camarada diamante!”, com o qual o poeta do Rio de Janeiro qualificava o poeta pernambucano. Cabral desconstruiu a homenagem a partir desse verso final, em “Resposta a Vinicius de Morais”(1975):
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Não sou um diamante nato
nem consegui cristalizá-lo:
se ele te surge no que faço,
será um diamante opaco,
de quem, por incapaz do vago,
quer de toda forma evitá-lo,
se não com o melhor , o claro
do diamante, com o impacto:
com a pedra, a aresta, com o aço
do diamante industrial, barato,
que, incapaz de ser cristal raro,
vale pelo que tem de cacto.(p.364)
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Definindo-se, em sua dureza, como pedra industrial, de pouco valor, o poema se ergue contra sua própria epígrafe.
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3) Os títulos de poemas
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Se contabilizarmos os poemas em cujos títulos se localizam nomes de autores brasileiros ou títulos de suas obras, chegaremos a um total de trinta.
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Situação ímpar é a de Carlos Drummond de Andrade. Após nomear dois poemas nos livros iniciais de João Cabral, desaparece sem deixar vestígios.
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O escritor mais citado, de longe, é Joaquim Cardozo, com seis incidências, quase sempre favoráveis, ou, na pior das hipóteses, neutras.
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São vários os textos de base anedótica, em que Cabral passa ao largo de qualquer avaliação literária (mas a ausência de avaliação já não seria uma avaliação?), para limitar-se ao registro de episódios curiosos, que testemunhou ou de que ouviu falar. Assim constroem-se “Murilo Mendes e os rios”, “Rubem Braga e o homem do farol”, “Contam de Clarice Lispector”:
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Um dia, Clarice Lispector
intercambiava com amigos
dez mil anedotas de morte,
e do que tem de sério e circo.
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Nisso, chegam outros amigos,
vindos do último futebol,
comentando o jogo, recontando-o,
refazendo-o, de gol a gol.
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Quando o futebol esmorece,
abre a boca um silêncio enorme
e ouve-se a voz de Clarice:
Vamos voltar a falar na morte?(p.528)
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Também frequentador constante do tema, João Cabral presta homenagens póstumas em “A Willy Lewin, morto” e “Na morte de Marques Rebelo”.
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Localizam-se também uns poucos poemas em que João Cabral não nomeia apenas ou diretamente o escritor, e sim o título da obra, acompanhada ou não da identidade do autor.
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Em tais casos, que julgamos mais interessantes, o que se expõe, ou se contrapõe, são modalidades do discurso literário, afins ou não do discurso cabralino. Nessa categoria entrariam “Ilustração para a `Carta aos puros´, de Vinícius de Morais”, “Casa grande & senzala, quarenta anos”, “A pedra do reino” [de Ariano Suassuna], “Sobre O sangue na veia” [de Marly de Oliveira].
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Nos textos relativos a Gilberto Freyre e a Ariano Suassuna, rende homenagens a visões de mundo e estilos bem contrastantes aos que pratica. Defensor da extrema lucidez, da vigília constante, do controle métrico-retórico, da artificialidade dos truncamentos sintáticos, assim se manifestou sobre Freyre:
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Ninguém escreveu em português
no brasileiro de sua língua:
esse à vontade que é o da rede,
dos alpendres, da alma mestiça,
medindo sua prosa de sesta,
ou prosa de quem se espreguiça.(361)
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Cultor do deserto, da paisagem e da linguagem esvaziada, da bruta contraposição cromática negro/branco (sua poesia é visual, mas não colorida), registrou um outro Nordeste em Ariano Suassuna:
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Foi bem saber-se que o Sertão
não só fala a língua do não.
…………………………………….
Tu, que conviveste o Sertão,
……………………………………..
nos deste a ver que nele o homem
não é só o capaz de sede e fome. (p.394)
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Três textos assumem particular relevo nesse nicho metalinguístico.
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“O sim contra o sim”(1961) abriga o único elogio de João Cabral a poeta brasileiro anterior ao Modernismo. Não por acaso, trata-se de um poeta do Nordeste – Augusto dos Anjos – avesso à musicalidade, e que empregava em sua poesia vocábulos considerados “prosaicos” ou vulgares, em contraste com a “pureza lexical” e o pendor pelas frases de efeito dos parnasianos:
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Tais águas [de Augusto dos Anjos] não são lavadeiras,
deixam tudo encardido:
o vermelho das chitas
ou o reluzente dos estilos(p.273)
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Em “Graciliano Ramos:”, pela primeira (e única) vez, João Cabral assume a persona de outro escritor brasileiro, com o qual, de resto, tem visíveis afinidades formais e temáticas (referimo-nos ao Graciliano Ramos, em seu romance Vidas secas, de 1938). A máscara alheia se patenteia no fato de o título do poema encerrar-se com dois pontos; logo, não se trata de poema sobre o autor, mas de uma simulação discursiva de Graciliano:
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Falo somente com o que falo:
com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca (p. 287)
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Tão refratário a expor-se, João Cabral o fez em “Autocrítica”, onde as linguagens e os espaços referenciais soberanos no afeto do poeta surgem numa íntima e tensa convivência:
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Só duas coisas conseguiram
(des)feri-lo até a poesia:
o Pernambuco de onde veio
e o aonde foi, a Andaluzia.
Um o vacinou do falar rico
e deu-lhe a outra, fêmea e viva
desafio demente: em verso
dar a ver Sertão e Sevilha. (p.430)
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4) As referências e as alusões
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Referências e alusões (não anunciadas em títulos de poemas, como no tópico anterior) podem traduzir-se em pequenas histórias envolvendo obras e autores brasileiros, ou apontarem também para questões de natureza metalinguística.
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Enquanto a referência tende a ser mais facilmente compreendida pelo leitor, a alusão é oblíqua, comporta zonas de ambiguidade. É pelo jogo alusivo que o lado mais ferino, às vezes sarcástico, de João Cabral vai manifestar-se.
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Novamente, o autor com maior número de referências – três – é o velho mestre Joaquim Cardozo. Em “Prosas na Maré da Jaqueira”, Cardozo faz-se acompanhar de dois poetas nordestinos: Carlos Pena Filho (a quem, individualmente, Melo Neto já dedicara um poema) e Mateus de Lima; este, um obscuro escritor, era irmão do conhecido Jorge de Lima, cuja poesia, pela ausência de citação, é maliciosamente desvalorizada pela presença fraterna e pouco expressiva de Mateus.
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Já em “À Brasília de Oscar Niemeyer”, a peculiaridade reside na inserção de texto alheio, devidamente identificado, em meio ao poema: “símbolos do que chamou Vinícius/ `imensos limites da pátria`” (p. 373). A inserção desse fragmento do verso viniciano[v] constitui-se na única utilização literal da palavra de outrem no corpus cabralino.
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O poeta praticamente ignora duas das principais figuras do Modernismo brasileiro: Mário de Andrade e Oswald de Andrade, citados de passagem em “Díptico: José Américo de Almeida”: “bem antes de ouvir dos Andrades” (p. 526). Essa desconsideração, aliás, parecia recíproca, pois em várias entrevistas Cabral relatou o silêncio com que sua produção inicial teria sido recebida (ou desprezada) pelos dois Andrades.
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No que tange às alusões, percorreremos pontos extremos do afeto cabralino. Às vezes, ele é apenas irônico, como no início de “A cana dos outros” (1961):
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Esse que andando planta
os rebolos de cana
nada é do Semeador
que se sonetizou.(p.267)
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O alvo é a poesia de Péricles Eugênio da Silva Ramos, um dos corifeus da Geração de 45, cujo livro Sol sem tempo (1953) contém o “Poema do semeador”; nele, as ações de um etéreo semeador são praticamente opostas aos gestos rudes do plantador de cana pernambucano. Péricles Eugênio evoca o “aroma de jardins sem consistência” e o “canto nupcial de polens tontos”[vi].
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Ironia também é arma (leve) dirigida contra Gilberto Freyre. Para João Cabral, Freyre teria proposto, em seu clássico Casa grande & senzala(1933), uma visão excessivamente conciliadora da formação social do Brasil. Numa cena de Morte e vida severina (1956), Melo Neto associa o nascimento de um menino a uma repentina explosão de esperança, na crença de um futuro melhor, por parte dos habitantes dos mocambos (habitações miseráveis). A idealizada reversão de expectativas é assim expressa:
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Cada casebre se torna
no mocambo exemplar
que tanto celebram os
sociólogos do lugar.(p.172)
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João Cabral sobe o tom no já citado “Graciliano Ramos:”, quando, para contrapor-se ao vigoroso estilo seco do romancista, alude a outro tipo de escrita, associada a uma “crosta viscosa/ resto de janta abaianada” (p. 287). Não é difícil atribuir tal estilo adiposo e “abaianado” a um famoso ficcionista nordestino, que, ademais, costumava incluir receitas culinárias em alguns de seus romances.
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Melo Neto tampouco é complacente com o escritor Homero Pires, personagem não nomeado de “Um piolho de Rui Barbosa”. Pires foi autor de vários livros sobre o jurista Rui Barbosa. Numa antiga conversa, reportada a Melo Neto, teria falado mal dos pernambucanos, o que já foi bastante para acender a ira do poeta.
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João Cabral passa da ironia ao sarcasmo em “Retrato de escritor” (1966), impiedosa descrição de um autor de quem fora amigo na juventude, acusado agora de exibir apenas na literatura sua (falsa) solidariedade à dor humana. Além disso, quanto mais distanciado estivesse o objeto da pseudocomiseração, mais “solidário” o escritor se mostraria – insensível, portanto, à dor e à miséria vizinhas:
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…ele se passa a limpo
o que ele escreveu da dor indonésia
lida no Rio, num telegrama do Egito (p.336)
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As alusões do afeto positivo concentram-se em Sevilha andando. Marly [de Oliveira], citada unicamente na dedicatória, espraia-se, alusiva, em dezoito poemas do livro. Configurada como metonímia feminina da cidade perfeita (Sevilha), Marly condensaria em si todos os atributos da beleza, da sensualidade e do aconchego, ainda que, acidentalmente, não fosse natural de Sevilha. Transmuda-se, então, na “Sevilhana que não se sabia”. Alguns exemplos:
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Assim, não há nenhum sentido
usar o “como” contigo:
és sevilhana, não és “como a”,
és Sevilha, não só sua sombra.(p.604)
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Uma mulher que sabe ser
mulher e centro do ao redor,
capaz de na Calle Regina
ou até num claustro ser o sol.(p.609)
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Eu a tenho, ali, a meu lado,
num sol negro de massa escura:
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que é a de tua cabeleira,
farol às avessas, sem luz,
e que me orienta a consciência
com a luz cigana que reluz.(p.612)
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Por fim, retornemos ao início, quando falamos de dedicatórias.
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Em 1945, num exemplar de O engenheiro, João Cabral compôs um poema-dedicatória a Lêdo Ivo. O texto consistia na sugestão de um futuro epitáfio para o amigo:
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Aqui repousa,
livre de todas as palavras,
LÊDO IVO,
poeta
na paz reencontrada
de antes de falar,
e em silêncio, silêncio
de quando as hélices param
no ar.(p.657)
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O poema poderia igualmente servir como um autoepitáfio cabralino: em 2009, quando vim à Espanha, as reuniões de trabalho rememoravam os dez anos de silêncio físico do poeta, falecido em 9 de outubro de 1999, no Rio de Janeiro. No entanto, aqui estamos, celebrando sua voz, ou melhor, deixando que sua poesia fale através de nós.
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Porque, a rigor, é sempre falso o silêncio de um poeta verdadeiro: a todo momento, sopradas pela paixão dos leitores, as hélices de sua poesia recomeçam a girar, numa vitória incansável contra a morte.
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[i] MELO NETO, João Cabral de. Poesia completa e prosa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. Citações do autor serão provenientes dessa edição, indicando-se, após a citação, o correspondente número da página.
[ii] CAMPOS, Augusto de. “joão/agrestes”. In:—. Despoesia. São Paulo: Perspectiva, 1994. p. 77.
[iii] ANDRADE, Carlos Drummond de. “Quadrilha”. In: —. Alguma poesia. Belo Horizonte, Pindorama, 1930. p. 103.
[iv] MORAIS, Vinicius de. “Retrato, à sua maneira”. In: — -. Antologia poética. Rio de Janeiro: A Noite, [s/d]. p.266.
[v] ——. “Solilóquio”. In:—. Antologia poética. Rio de Janeiro: A Noite, [s/d]. p. 53. Verso 1 do poema: “Talvez os imensos limites da pátria me lembrem os puros”.
[vi] RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. “Poema do semeador”. In: —. Sol sem tempo. São Paulo: Clube de Poesia de São Paulo, 1953. p. 12.
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[Texto traduzido por Nylcéa Pedra]
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Antonio Carlos Secchin nasceu no Rio de Janeiro. É Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1982). Professor de Literatura Brasileira das Universidades de Bordeaux, (1975-1979), Roma (1985), Rennes (1991), Mérida (1999), Nápoles (2007), Paris Sorbonne (2009) e da Faculdade de Letras da UFRJ. Membro de 42 editorias ou conselhos, no Brasil e no exterior, sobretudo de periódicos de investigação literária. Total de 15 prêmios nacionais, destacando-se: 1.o lugar, categoria “ensaio”, do Instituto Nacional do Livro (1983); Prêmio Sílvio Romero, da Academia Brasileira de Letras, 1985, ambos para João Cabral: a Poesia do Menos; Prêmio Alphonsus de Guimaraens, da Fundação Biblioteca Nacional (2002); Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras (2003); Prêmio Nacional do PEN Clube do Brasil (2003), atribuídos a Todos os Ventos como melhor livro de poesia. Poeta com vários livros publicados, destacando-se Todos os ventos (poesia reunida, 2002), que obteve os prêmios da Fundação Biblioteca Nacional, da Academia Brasileira de Letras e do PEN Clube para melhor livro do gênero publicado no país em 2002. É membro da Academia Brasileira de Letras. E-mail: acsecchin@uol.com.br
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