João Cabral e a Literatura Brasileira


.

Muito se fala na maciça presença da Espanha na obra poética de João Cabral de Melo Neto. E com razão: a Espanha comparece em 129 de seus poemas, e essa constante presença tem sido, cada vez mais, objeto de teses, ensaios e livros.
.
Exatamente por isso – considerando a quantidade e a qualidade de estudos hispanizantes dedicados ao poeta  – talvez, agora, fosse conveniente mudar o ângulo da investigação, e centrá-lo num ponto praticamente inexplorado: quais as marcas da literatura brasileira  na produção de Cabral? Diz-se, com  alguma razão,  que ele  apenas superficialmente referiu-se às letras brasileiras, e nem sempre de modo favorável. Ainda assim, uma análise minuciosa – que não desenvolveremos – poderia  apontar novos caminhos para a compreensão da poesia cabralina,  independentemente do  notório intercâmbio por ele desenvolvido com a cultura  espanhola.
.
Apresentaremos, resumidamente, as principais conexões de João Cabral com a literatura brasileira, estabelecendo, de início, uma tipologia dessas relações, a partir de quatro polos distintos: 1) as dedicatórias; 2) as epígrafes; 3) os títulos de poemas; 4) as referências e alusões no interior dos textos.
.
Esses grandes eixos poderiam, por exemplo, ser submetidos a uma rigorosa investigação diacrônica. Com o passar do tempo, mantêm-se, aumentam ou diminuem as  presenças brasileiras  em títulos  e referências textuais?  Os nomes inicialmente citados persistem ao longo da obra? Há grandes homenageados? Ocorrem desaparecimentos súbitos? Tudo isso um levantamento  cronológico cuidaria de pôr em relevo.
.
Para retornarmos à nossa tipologia, salientemos que, no interior de cada categoria, poderíamos estabelecer uma tripartição de juízo de valores emitidos pelo autor, a  saber: comentário neutro, positivo, negativo. Nem sempre citação implica endosso; diríamos mesmo que a neutralidade e a crítica, velada ou explícita, acabam prevalecendo.

.

1) As dedicatórias
.
Aqui, cabe distinguir se as dedicatórias reportam-se a um poema ou,  mais prestigiosas, a  um livro inteiro; se estampam  apenas um protocolo cordial, ou se estão  acompanhadas   de alguma motivação  literária, para além da simples amizade.
.
Dos vinte livros do poeta[i], nada menos do que catorze são dedicados. Desses, porém, somente  quatro apresentam algo  além do nome do homenageado. São eles:
.
O engenheiro
, de 1945 –“A Carlos Drummond de Andrade, meu amigo” (p. 42); O cão sem plumas, de 1952 – “A Joaquim Cardozo, poeta do [rio] Capibaribe” (p. 80);  A educação pela pedra, de 1966 – “A Manuel Bandeira, esta antilira para  seus oitent´anos” (p. 308); Agrestes, de 1985 – “A Augusto de Campos [segue-se um poema]” (p. 485).
.
Na primeira dedicatória, ao externar seus vínculos  de amizade, não é impossível que, de modo consciente ou não, houvesse também, por parte de Melo Neto,  um desejo de legitimar sua própria literatura  através da afirmação de vínculos mantidos com Carlos Drummond de Andrade, o nome mais  importante da poesia brasileira do século XX.  João Cabral, aliás, nunca escondeu sua dívida estética para com  Drummond, ainda que, alguns anos depois,  praticamente rompesse relações com ele, tanto poética  quanto pessoalmente.
.
Relações que preservou a vida inteira com o segundo homenageado, Joaquim Cardozo, também, como João Cabral, nascido na cidade do Recife, e igualmente cantor da paisagem nativa: por isso foi chamado de “poeta do Capibaribe”.
.
Na mesma cidade nasceu o terceiro poeta, Manuel Bandeira, primo de João Cabral, e, como Joaquim Cardozo, de uma geração anterior a Melo Neto. Manuel Bandeira, porém, cedo mudou-se para o Rio de Janeiro, e fala relativamente pouco da terra natal, o que, para um  regionalista ferrenho à moda de  Cabral,  deveria ser quase uma ofensa.  Além disso, a poesia de Bandeira é considerada um dos pontos mais  altos do lirismo brasileiro, enquanto Melo Neto  rejeita  em seus versos a presença explícita do sentimento. Daí, portanto, que não deixe  de ser metalinguísticamente irônica e depreciativa a dedicatória  “A Manuel Bandeira, esta antilira para seus oitent´anos” – a rigor, uma antidedicatória.
.
Situação oposta à derradeira, dirigida ao poeta concretista Augusto de Campos, frente a quem João Cabral declara  divergências que não  escondem afinidades, enquanto, diante de  Bandeira, adotou um tom aparentemente neutro para sublinhar radical diferença (a “antilira”).
.
Pelo pouco usual procedimento de uma dedicatória em forma de poema, vale a pena transcrever trechos desse texto, em que Melo Neto  eleva  a  arte  de Augusto de Campos a um  patamar superior ao da poesia que ele próprio pratica:


Você aqui reencontrará

as mesmas coisas e loisas

que me fazem escrever

tanto e de tão poucas coisas:

Nada disso que você

construiu durante a vida;

muito aquém do ponto extremo

é a poesia oferecida

a quem pode, como a sua,

lavar-se da que existia,

levá-la à pureza extrema

em que é perdida de vista;

Por que é então que este livro

tão longamente é enviado

a quem faz uma poesia

de distinta liga de aço?

Envio-o ao leitor contra,

envio-o ao leitor malgrado

e intolerante, o que Pound

diz de todos o mais grato;

.

Cabral confessa-se redundante (escrever tanto de tão poucas coisas), declara que a obra de Augusto é mais radical do que a sua (situada “aquém do ponto extremo”), e diz desejar leitores  exigentes  e contestadores, personificados em Augusto de Campos e Ezra Pound.  O suposto confronto, sob o manto da modéstia,  era de tal modo autodepreciativo, que, posteriormente, Augusto de Campos replicaria:

 

e                   não                  encontro         nem

palavras        para                  o                    ..abraço

senão            .as                   ..do                aprendiz

……………………………………………………………………….

nunca            houve              um                  leitor

contra            mais                a                    . favor[ii]

.
Quanto às demais dedicatórias de livros, em que nada consta além do nome do agraciado, observamos que a grande maioria  contempla  poetas, sejam eles de gerações anteriores, como Augusto Frederico Schmidt, Murilo Mendes, Vinicius de Morais e (outra vez) Carlos Drummond de Andrade, sejam da geração de Cabral: Lêdo Ivo e Antônio Rangel  Bandeira.
.
Com exceção de Murilo Mendes, cuja dicção surrealista reverberou  no livro de estreia cabralino, Pedra do sono (1942), os demais escritores pouco têm a ver com a poesia de Cabral, alguns deles sendo considerados  seus antípodas – é o caso dos líricos Schmidt e Vinicius de Morais. Ambos, porém, figuras importantes na biografia do poeta. Schmidt pagou do próprio bolso a impressão do segundo livro de João Cabral,  O engenheiro ;  ironicamente, financiou um tipo de poesia que iria destronar a sua própria. Vinicius de Morais, na avaliação  de João Cabral, era o poeta brasileiro de maior talento – desperdiçado, porém, nos descaminhos do lirismo amoroso. Talvez para provocar o amigo, Melo Neto tenha-lhe dedicado uma de suas  mais cerebrais e complexas composições: Uma faca só lâmina (1956). Lêdo Ivo, escritor de gama variadíssima de  recursos, foi amigo de João Cabral desde  a adolescência e, à revelia, é considerado representante-mor  da “Geração de 45”, estigmatizada  pelos historiadores literários, e na qual, cronologicamente, João Cabral se insere, apesar de sempre haver sublinhado distâncias frente aos  projetos estéticos e ideológicos do grupo de 45.
.
A única dedicatória feminina – et pour cause – encontra-se no derradeiro livro de Cabral, Sevilha andando (1989): “Para Marly” (p. 598) – trata-se da poetisa Marly de Oliveira,  sua segunda esposa.
.
Curiosamente, João Cabral revelava-se, em termos proporcionais, menos pródigo na dedicatória de poemas do que na de livros. Em sua obra, composta por centenas de  poemas,  apenas 21 são dedicados. Nesse pequeno contingente, prevalece o protocolo da simples amizade, destituída de expressa sintonia literária. Eventualmente um adendo “justifica” a dedicatória; outras vezes, ela se fundamenta na região  de nascimento do homenageado. Com efeito, A escola das facas (1980) é composta apenas de textos  relativos ao estado natal do poeta, Pernambuco. Alguns desses poemas consignam dedicatórias  a  familiares, amigos ou escritores pernambucanos.
.
Outros exemplos da parcimônia cabralina: apesar de ser o poeta mais valorizado pela crítica e pelos estudos universitários na segunda metade do século XX, um único  ensaísta mereceu-lhe  dedicatória: Eduardo Portella (que, aliás, além de estudar em Pernambuco, residiu na Espanha,  como João Cabral). Já a um primo do poeta, o escritor Felix de Athayde, não coube sequer um poema inteiro, mas apenas  uma parte: a ele  foram dedicados 32 dos 128 versos de “O sim contra o sim”, de Serial (1961).

.

2) As epígrafes
.

Um segundo eixo revelador da presença da literatura  brasileira na obra de João Cabral são as epígrafes;  aqui, as incidências são modestíssimas. É certo que o recurso, em geral, não abunda em sua poesia: no todo, apenas onze vezes. Em nove delas, porém, a procedência é estrangeira. As brasileiras acolhem os assíduos Drummond de Andrade e Vinícius de Morais.
.
Do primeiro, Cabral se vale do trecho inicial de um famoso poema, “Quadrilha” [iii] (1930): “João amava Teresa que amava Raimundo / que amava Maria que amava Joaquim  que amava Lili”.
.
O fragmento, extraído de uma composição  de natureza humorística, é subtraído desse contexto e serve de epígrafe ao segundo livro de João Cabral, intitulado “Os três mal-amados” (1943), integrado por  monólogos alternadamente proferidos  por João, Raimundo e Joaquim, cada um deles representante de determinada maneira de vivenciar  o impacto amoroso e de reelaborá-lo em linguagem poética. Portanto, o texto de Drummond, mais do que mera epígrafe, converte-se numa espécie de mote, a ser glosado diversamente pelos três personagens.
.
A epígrafe de Vinícius provém do  algo enigmático poema”Retrato, à sua maneira”[iv], encerrado pelo verso “Camarada diamante!”, com o qual o poeta do Rio de Janeiro qualificava o poeta pernambucano.  Cabral desconstruiu a homenagem a partir desse verso final, em “Resposta a Vinicius de Morais”(1975):

.

Não sou um diamante nato

nem consegui cristalizá-lo:

se ele te surge no que faço,

será um diamante opaco,

de quem, por incapaz do vago,

quer de toda forma evitá-lo,

se não com o melhor , o claro

do diamante, com o impacto:

com a pedra, a aresta, com o aço

do diamante industrial, barato,

que, incapaz de ser cristal raro,

vale pelo que tem de cacto.(p.364)
.

Definindo-se, em sua dureza,  como pedra industrial, de pouco valor, o poema se ergue contra sua própria epígrafe.

.

3) Os títulos de poemas
.

Se contabilizarmos os poemas em cujos títulos se localizam nomes de autores brasileiros ou títulos de suas obras, chegaremos a um total de trinta.
.
Situação ímpar é a de Carlos Drummond de Andrade. Após nomear  dois poemas nos livros iniciais de João Cabral, desaparece sem deixar vestígios.
.
O escritor mais citado, de longe, é Joaquim Cardozo, com seis incidências,  quase sempre favoráveis, ou, na pior das hipóteses, neutras.
.
São vários os textos de base anedótica, em que Cabral passa ao largo de qualquer avaliação literária (mas a ausência de avaliação já não seria uma avaliação?),  para limitar-se ao registro de  episódios curiosos, que testemunhou ou de que ouviu falar. Assim constroem-se “Murilo Mendes e os rios”, “Rubem Braga e o homem do farol”, “Contam de Clarice Lispector”:
.

Um dia, Clarice Lispector

intercambiava com amigos

dez mil anedotas de morte,

e do que tem de sério e circo.

.

Nisso, chegam outros amigos,

vindos do último futebol,

comentando o jogo, recontando-o,

refazendo-o, de gol a gol.

.

Quando o futebol esmorece,

abre a boca um silêncio enorme

e ouve-se a voz de Clarice:

Vamos voltar a falar na morte?(p.528)
.

.
Também frequentador constante do tema, João Cabral presta  homenagens póstumas em “A Willy Lewin, morto” e “Na morte de Marques Rebelo”.
.
Localizam-se também uns poucos poemas em que João Cabral não nomeia apenas ou diretamente o escritor, e sim o título da obra, acompanhada ou não da identidade do autor.
.
Em tais casos, que julgamos mais interessantes, o que se expõe, ou se contrapõe, são modalidades do discurso literário, afins ou não do discurso cabralino. Nessa categoria entrariam “Ilustração para a `Carta aos puros´, de Vinícius de Morais”, “Casa grande & senzala, quarenta anos”, “A pedra do reino” [de Ariano Suassuna], “Sobre O sangue  na veia” [de Marly de Oliveira].
.
Nos textos relativos a Gilberto Freyre e a Ariano Suassuna, rende homenagens a visões de mundo e estilos bem contrastantes aos que pratica. Defensor da extrema lucidez, da vigília constante, do controle métrico-retórico, da artificialidade dos truncamentos sintáticos, assim se manifestou sobre Freyre:

.

Ninguém escreveu em português

no brasileiro de sua língua:

esse à vontade que é o da rede,

dos alpendres, da alma mestiça,

medindo sua prosa de sesta,

ou prosa de quem se espreguiça.(361)
.

Cultor do deserto, da paisagem e da linguagem esvaziada, da bruta contraposição cromática negro/branco (sua poesia é visual, mas não colorida), registrou um outro Nordeste em Ariano Suassuna:

.

Foi bem saber-se que o Sertão

não só fala a língua do não.

…………………………………….

Tu, que conviveste o Sertão,

……………………………………..

nos deste a ver que nele o homem

não é só o capaz de sede e fome. (p.394)
.

.
Três  textos assumem particular relevo nesse nicho metalinguístico.
.
“O sim contra o sim”(1961) abriga o único elogio de João Cabral a poeta brasileiro anterior ao Modernismo. Não por acaso, trata-se de um poeta do Nordeste – Augusto dos Anjos – avesso à musicalidade,  e que empregava em sua poesia  vocábulos considerados “prosaicos” ou vulgares, em  contraste com a “pureza lexical”  e o pendor pelas frases de efeito dos  parnasianos:

.

Tais águas [de Augusto dos Anjos] não são lavadeiras,

deixam tudo encardido:

o vermelho das chitas

ou o reluzente dos estilos(p.273)

.

Em “Graciliano Ramos:”, pela primeira (e única) vez, João Cabral assume a persona de outro escritor brasileiro, com o qual, de resto, tem visíveis afinidades formais e temáticas (referimo-nos ao Graciliano Ramos,  em seu romance  Vidas secas, de 1938). A máscara alheia se patenteia no fato de o título do poema encerrar-se com dois pontos; logo, não se trata de  poema sobre o autor, mas de uma simulação discursiva de Graciliano:

.
Falo somente com o que falo:

com as mesmas vinte palavras

girando ao redor do sol

que as limpa do que não é faca (p. 287)
.
.
Tão refratário a expor-se, João Cabral  o fez em “Autocrítica”, onde as linguagens e os espaços referenciais soberanos no  afeto do poeta surgem numa íntima e tensa convivência:
.
.
Só duas coisas conseguiram

(des)feri-lo até a  poesia:

o Pernambuco de onde veio

e o aonde foi, a Andaluzia.

Um o vacinou do falar  rico

e deu-lhe a outra, fêmea e viva

desafio  demente: em verso

dar a ver Sertão  e Sevilha. (p.430)

.

4) As referências e as alusões
.
Referências e alusões (não anunciadas em títulos de poemas, como no tópico anterior) podem traduzir-se em pequenas histórias  envolvendo obras e autores brasileiros, ou apontarem também para questões de natureza metalinguística.
.
Enquanto a referência tende a ser  mais facilmente compreendida pelo leitor, a alusão é oblíqua, comporta zonas de ambiguidade.  É pelo  jogo alusivo  que o lado mais ferino, às vezes sarcástico, de João Cabral vai  manifestar-se.
.
Novamente, o autor com maior número de referências – três – é o velho mestre  Joaquim Cardozo. Em “Prosas na Maré da Jaqueira”, Cardozo faz-se acompanhar de dois poetas nordestinos: Carlos Pena Filho (a quem, individualmente, Melo Neto já dedicara um poema) e Mateus de Lima; este, um obscuro escritor, era  irmão do conhecido Jorge de Lima, cuja poesia, pela ausência de citação, é maliciosamente desvalorizada pela   presença fraterna e pouco  expressiva de Mateus.
.
Já em “À Brasília de Oscar Niemeyer”, a peculiaridade reside  na inserção de texto  alheio, devidamente identificado, em meio ao  poema: “símbolos do que chamou Vinícius/ `imensos limites da pátria`” (p. 373). A inserção desse fragmento do verso viniciano[v] constitui-se na única utilização literal da palavra de  outrem no corpus cabralino.
.
O poeta praticamente ignora duas das principais  figuras do Modernismo brasileiro: Mário de Andrade e Oswald de Andrade, citados de passagem em “Díptico: José Américo de Almeida”: “bem antes de ouvir dos Andrades” (p. 526). Essa desconsideração, aliás, parecia recíproca, pois em várias entrevistas Cabral relatou o silêncio com que sua produção inicial teria sido recebida (ou desprezada) pelos dois Andrades.
.
No que tange às alusões, percorreremos pontos extremos do afeto cabralino. Às vezes, ele é apenas irônico, como no início de “A cana dos outros” (1961):
.

Esse que andando planta

os rebolos de cana

nada é do Semeador

que se sonetizou.(p.267)
.

O alvo é a poesia de Péricles Eugênio da Silva Ramos, um dos corifeus da Geração de 45, cujo livro Sol sem tempo (1953) contém o “Poema do semeador”; nele, as ações de um etéreo semeador são praticamente opostas  aos gestos  rudes  do plantador de cana pernambucano. Péricles Eugênio evoca o “aroma  de jardins sem consistência” e o  “canto nupcial de polens tontos”[vi].
.
Ironia também é arma (leve) dirigida contra Gilberto Freyre.  Para João Cabral, Freyre teria proposto, em seu clássico Casa grande & senzala(1933), uma visão excessivamente conciliadora da formação social do Brasil. Numa cena de  Morte e vida severina (1956), Melo Neto associa o nascimento de um menino a uma repentina explosão de esperança, na crença de um futuro melhor,  por parte dos habitantes dos mocambos (habitações miseráveis). A idealizada reversão de expectativas é assim expressa:
.

Cada casebre se torna

no mocambo exemplar

que tanto celebram os

sociólogos do lugar.(p.172)
.

João Cabral sobe o tom no já citado “Graciliano Ramos:”, quando,  para contrapor-se ao vigoroso  estilo seco do romancista, alude a outro tipo de escrita, associada a uma  “crosta viscosa/ resto de janta abaianada” (p. 287). Não é difícil  atribuir  tal estilo adiposo  e “abaianado” a um famoso ficcionista nordestino, que, ademais, costumava incluir  receitas culinárias em alguns de seus romances.
.
Melo Neto tampouco é complacente com o escritor Homero Pires, personagem não nomeado de “Um piolho de Rui Barbosa”. Pires foi autor de vários livros sobre o jurista Rui Barbosa. Numa antiga conversa,  reportada a Melo Neto, teria falado mal dos  pernambucanos, o que  já foi bastante para acender a ira do poeta.
.
João Cabral  passa da ironia ao sarcasmo em “Retrato de escritor” (1966), impiedosa descrição de um autor de quem fora amigo na juventude, acusado agora de exibir apenas  na literatura sua (falsa)  solidariedade à dor humana. Além disso, quanto mais distanciado estivesse  o objeto da pseudocomiseração,  mais “solidário” o escritor se mostraria – insensível, portanto, à dor e à miséria vizinhas:
.

…ele se passa a limpo

o que ele escreveu da dor indonésia

lida no Rio, num telegrama do Egito (p.336)

.
As alusões do afeto positivo concentram-se em Sevilha andando. Marly [de Oliveira], citada unicamente  na dedicatória, espraia-se, alusiva, em dezoito poemas do livro. Configurada como metonímia feminina da cidade perfeita (Sevilha),  Marly condensaria em si  todos os atributos da beleza, da sensualidade e do  aconchego, ainda que, acidentalmente,  não fosse natural de Sevilha.  Transmuda-se, então,  na  “Sevilhana que não se sabia”. Alguns exemplos:

.
Assim, não há nenhum sentido

usar o “como” contigo:

és sevilhana, não és “como a”,

és Sevilha, não só sua sombra.(p.604)

.

****************************

Uma mulher que sabe ser

mulher e centro do ao redor,

capaz de na Calle Regina

ou até num claustro ser o sol.(p.609)

.

*****************************

Eu a tenho, ali, a meu lado,

num sol negro de massa escura:

.

que é a de tua cabeleira,

farol às avessas, sem luz,

e que me orienta a consciência

com a luz cigana que reluz.(p.612)
.

Por fim, retornemos ao início, quando falamos de dedicatórias.

.
Em 1945, num exemplar de O engenheiro,  João Cabral compôs um poema-dedicatória a Lêdo Ivo. O texto consistia na sugestão de um futuro epitáfio para o amigo:
.
.
Aqui repousa,

livre de todas as palavras,

LÊDO IVO,

poeta

na paz reencontrada

de antes de falar,

e em silêncio, silêncio

de quando as hélices param

no ar.(p.657)
.
.
O poema poderia igualmente  servir como um autoepitáfio cabralino: em 2009, quando vim à Espanha, as  reuniões  de trabalho rememoravam  os dez anos de silêncio físico  do poeta, falecido em 9 de outubro de 1999, no Rio de Janeiro. No entanto, aqui estamos, celebrando sua voz, ou melhor, deixando que sua poesia fale através de nós.
.
Porque, a rigor, é sempre falso o silêncio de um  poeta verdadeiro: a todo momento, sopradas pela paixão  dos leitores, as hélices de sua poesia recomeçam  a girar, numa vitória incansável contra a morte.

.

.

[i] MELO NETO, João Cabral de. Poesia completa e prosa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. Citações  do autor serão   provenientes dessa edição, indicando-se, após a citação, o correspondente número da página.

[ii] CAMPOS, Augusto de. “joão/agrestes”. In:—. Despoesia.  São Paulo: Perspectiva, 1994. p. 77.

[iii] ANDRADE, Carlos Drummond de. “Quadrilha”. In: —. Alguma poesia. Belo Horizonte, Pindorama, 1930. p. 103.

[iv] MORAIS, Vinicius de. “Retrato, à sua maneira”. In: — -. Antologia poética. Rio de Janeiro: A Noite, [s/d]. p.266.

[v] ——. “Solilóquio”. In:—. Antologia poética. Rio de Janeiro: A Noite, [s/d]. p. 53. Verso 1 do  poema: “Talvez os imensos limites da pátria me lembrem os puros”.

[vi] RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. “Poema do semeador”. In: —. Sol sem tempo. São Paulo: Clube de Poesia de São Paulo, 1953. p. 12.

.

.
[Texto traduzido por Nylcéa Pedra]

 

 

 

 

.

Antonio Carlos Secchin nasceu no Rio de Janeiro. É Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1982). Professor de Literatura Brasileira das Universidades de Bordeaux, (1975-1979), Roma (1985), Rennes (1991), Mérida (1999), Nápoles (2007), Paris Sorbonne (2009) e da Faculdade de Letras da UFRJ. Membro de 42 editorias ou conselhos, no Brasil e no exterior, sobretudo de periódicos de investigação literária. Total de 15 prêmios nacionais, destacando-se: 1.o lugar, categoria “ensaio”, do Instituto Nacional do Livro (1983); Prêmio Sílvio Romero, da Academia Brasileira de Letras, 1985, ambos para João Cabral: a Poesia do Menos; Prêmio Alphonsus de Guimaraens, da Fundação Biblioteca Nacional (2002); Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras (2003); Prêmio Nacional do PEN Clube do Brasil (2003), atribuídos a Todos os Ventos como melhor livro de poesia. Poeta com vários livros publicados, destacando-se Todos os ventos (poesia reunida, 2002), que obteve os prêmios  da Fundação Biblioteca Nacional,  da Academia Brasileira de Letras e do PEN Clube para melhor livro do gênero  publicado no país em 2002. É membro da Academia Brasileira de Letras. E-mail: acsecchin@uol.com.br




Comentários (4 comentários)

  1. Ricardo Silvestrin, Grande texto, Secchin! Veio pra subir ainda mais o nível da conversa no Musa Rara!
    16 fevereiro, 2012 as 3:08
  2. neuza pinheiro, felizes dos que ganharam uma anedota um epitáfio de João Cabral de Melo Neto (…) e felizes de nós hélices girando lendo as palavras limpas texto reluzente de Amor a João Cabral de Melo Neto
    16 fevereiro, 2012 as 13:22
  3. Luiz Paulo Faccioli, Magistral, para se dizer o mínimo. Um ensaio de tal qualidade é a prova de que Musa Rara não veio para brincar nem para ser mais um. Parabéns ao ensaísta e ao editor.
    20 fevereiro, 2012 as 15:46

Comente o texto


*

Comente tambm via Facebook