Gil visita Manoel de Barros
GIL E MANOEL DE BARROS: UM PAPO PRA LÁ DO PANTANAL
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Gilberto Gil, quando ministro da Cultura no primeiro governo Lula, usou o quanto pode a linguagem metafórica da poesia e da musica para comunicar a política ministerial em si.
Gil cantou, dançou, poetizou, chorou e até incorporou certas entidades para propagar que a cultura e as várias formas de arte são prioridades num país como o Brasil, com múltiplas explosões de talentos, mas com poucas políticas públicas que contemplem os artistas e seus agentes.
Muita gente do mundo político – os caretas de plantão na Esplanada dos Ministérios, no Congresso e até mesmo dentro do Ministério da Cultura – não gostava das performances de Gil. Eu adorava, vibrava e, como seu assessor direto na área de Comunicação, dava a maior força a este lado poético.
Vi Gil recitando Paulo Leminski e gravando poemas de Fernando Pessoa para um CD de André Luiz de Oliveira. Voei com ele horas de helicóptero pelo interior brasileiro para passar uma tarde de bons papos no espaço cultural que Frans Krajcberg mantêm em Nova Viçosa, litoral Sul da Bahia. Fui com ele a escolas de samba e ao Rodeio de Barretos.
Enfim, Gil teve uma agenda poética e musical quando ministro. E dessas suas atividades, quase que clandestina para o mundo político brasiliense, uma merece destaque: seu encontro com o poeta pantaneiro Manoel de Barros, que foi armado por mim durante uma visita que ele, Gil, fez ao Estado do Mato Grosso do Sul.
Foi uma tarde inesquecível, que documentei com uma câmera de filmar, outra de fotografar e um pequeno gravador. Esse texto que segue foi publicado na época pelo site do Ministério da Cultura. Provavelmente, ele (o texto) fará parte do livro-documento que pretendo publicar em breve com a memória e os arquivos desse histórico período da cultura brasileira.
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Gil visita Manoel de Barros
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“Oi Gil… quanto prazer tê-lo em casa. Mas estou recebendo aqui o poeta e não o ministro.”
Esperto, foi Manoel de Barros quem tratou logo de quebrar o protocolo. Trouxe o ministro-cantor para o mundo das palavras. Gil, barroco-baiano, aceitou e tocou em frente.
“O prazer é todo meu, Manoel. Fazia tempo que buscava este encontro. Sua prosa poética me encanta, está na mesma margem da de Guimarães Rosa.”
Manoel de Barros se orgulhou. Aos 88 anos, cabeleira branquinha como as garças do Pantanal, jeito de passarinho tímido, foi receber o ministro Gilberto Gil no portão de entrada da sua casa na pacata Rua Piratininga, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Estava acompanhado de Dona Stella, sua mulher, da filha e de amigos.
O ministro-poeta também esperava por este encontro há algum tempo. Tinha vontade de conhecer e papear com seu colega das águas pantaneiras. As duas tentativas anteriores haviam fracassado. Manoel não pode comparecer à Brasília para receber a Medalha da Ordem do Mérito Cultural de 2004, outorgada pelo presidente Lula e pelo ministro da Cultura. Nem tampouco a uma estada do ministro Gil à cidade de Corumbá. Andava dodói, mas já voltou à ativa.
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– Cerveja, Guaraná, vinho ou Coca-Cola, Gil?
– Coca-Cola normal, responde o ministro.
Um amigo de Manoel de Barros, o jornalista Bosco Martins, jogou o primeiro tema na sala, onde eles se sentaram quase frente a frente, cada um em um sofá para um papo de provocações e poesia:
– Ministro, nós já temos parcerias e precisamos ampliá-las’, diz Martins. O poeta Manoel foi personagem de um documentário patrocinado pelo Ministério. Um Doc-TV longo sobre seus versos. No site do MinC também tem longa matéria. E no ano que vem ele vai concorrer ao Prêmio Jorge Amado, na Bahia. Tem o valor de 100 mil reais. O poeta vai encher as burras…
– Esse meu livro foi indicado para o Prêmio Jabuti, esclarece Manoel.
– Como se chama? Pergunta Gil.
– Poemas Rupestres, responde.
– O título é bem a sua cara, confere o ministro.
As pessoas presentes começam a falar do trabalho de articulação cultural do ministro e lembram do discurso feito à tarde (dia 6 de abril) num encontro com a comunidade cultural do futuro Estado do Pantanal, quando o ministro defendeu a formação de Bacias Culturais, como áreas de sustentação de um Sistema Nacional de Cultura que o MinC vem colocando em prática.
– Olha – continua Gil. As pessoas são diferentes, assim como as capacidades de ação também são. Se tivéssemos um outro ministro agora, talvez ele estivesse fazendo outra coisa. Eu optei por cuidar disso: qual o conceito de cultura que temos e queremos? Como estão os recursos da cultura? Fazer um trabalho de abrir novas estradas culturais, construção de novas picadas, explica Gil.
– Nós estamos pensando em um Doc-TV de integração latino-americana, diz alguém.
– Mas nós já temos um Doc-Tv para a América Latina, frisa o ministro perguntando em seguida: E você está escrevendo agora, Manoel?
– Bem, Gil. É o que eu sei fazer. Agora, então, estou com mais folga.
– Por que você tem mais folga agora?
– Porque sou vagabundo… ri Manoel. Antes eu tinha fazendas. Meu filho agora toma conta delas e eu fico na vagabundagem. Conquistei o ócio.
– É, uma matéria-prima da criação.
Alguém diz alto que Manoel de Barros só escreve à mão. Não se dá bem com computador.
Gil diz que ele também gosta de escrever à mão. E dá linha à pipa:
– Eu gosto de escrever em qualquer lugar. Quarto de hotel, dentro de avião, na sala de espera do dentista. Escrevo muito em guardanapo, papel de embrulho…
– Você compõe a música, né Gil, diz Manoel.
– Aí sim, normalmente com o violão. Às vezes as ideias textuais vêm antes, a música vem depois. Às vezes a música sai e a letra vem depois. Raramente as duas coisas de uma vez só.
– Você não tem muitas parcerias, né? Indaga Manoel.
– Muito poucas. Algumas com Caetano, quase 10; outras com José Carlos Capinam, umas 10 com João Donato, outras com o desaparecido poeta Torquato Neto.
– E quantas são?
– Umas 500 e tantas. Mas 400 e tantas são minhas mesmo.
– Seu maior parceiro é o Caetano? Pergunta Manoel.
– É o mais conhecido. Mas não chegam a dez nossas parcerias. Como nós fizemos há uns cinco anos um trabalho juntos para comemorar a Tropicália, fizemos umas três ou quatro canções juntas. Então ele ficou mais associado a mim.
A conversa entre os dois poetas é mais uma vez interrompida. Lembram uma antiga entrevista onde Gilberto Gil afirma ter assistido ao último show de Jimi Hendrix.
Mas Manoel volta à carga e lhe pergunta sobre os movimentos de poesias dos mais jovens.
Gil lembra dos Poetas da Praça, de Salvador; e do grupo carioca Nuvem Cigana, liderado por Chacal.
O papo segue para o lado político. Perguntam se o ministro já se adaptou ao mundo político de Brasília ou se está se sentindo exótico:
– Eu sou exótico. Não tenho que me sentir, responde.
– Já se acomodou por lá?, espeta Manoel.
– O grau de acomodação vai sendo construído. Você tem que se adaptar a uma série de coisas. E o grau necessário de incomodação também.
– Se tiver mais quatro anos, você vai junto?
– Vai depender de poder fazer coisas. Não adianta só o prestígio que eu traga para a função. É preciso ter condições mínimas para fazer coisas e ter receptividade do governo.
Discute-se a função da ACAD e dos órgãos arrecadadores. Debate-se sobre Direitos Autorais e fala-se sobre as posições éticas do ministro em relação a sua carreira artística.
– Quando os fãs vão ter obras inéditas do artista Gilberto Gil? Indaga um dos presentes.
– Não faço ideia. Quando tiver tempo. Não tenho feito, não tenho intenção. Estou sem o tempo, sem o ócio. E tenho pensado ao contrário: me deem mais trabalho, me ocupem mais. Músicas, só quando tiver tempo. Nem rascunho de avião tem acontecido. Aliás, só fiz um registro. Anotei em um livro que estou lendo de um filósofo francês. O livro se chama ‘Um sábio não tem ideia’. É de um especialista em China, em Lao Tsé, em Confúcio. Este livro acabou mexendo na minha cabeça e eu anotei na sua contracapa uns seis versos que algum dia poderão vir a ser um poema, uma letra de música do futuro. Uma das máximas desse livro é sobre uma das ideias de Confúcio que fala do meio justo, o justo meio. Ele diz: o justo meio está na igual possibilidade dos extremos. É um sentido profundo, complementar, dialético. Não excludente, não paradoxal, não maniqueísta na vida. Sobre essas sensações escrevi um início de poema.
– Roubaram o poeta, diz Manoel.
– Precisa às vezes. Eles precisam também, rebate Gil.
O secretário de Cultura, Silvio Nutri, avisa que o governador Zeca do PT está esperando o ministro e o poeta para um jantar com a presença do ministro José Dirceu. Gil cantarola para Manoel uma despedida:
– Eu vim aqui pra te vê/ Como te vi vou m´embora/ Trabalho na barca grande/ Só chego fora de hora’. Em seguida explica: é uma ciranda da região da Zona da Mata do Recife que recolhi há muitos anos atrás. Bonita a construção, não é?
A família pede para tirar fotos com o ministro. Gil dá sua versão sobre o encontro e comenta um verso de Manoel.
– Onze horas no lombo das águas. Linda essa ideia. Uma coisa que não esquecerei nunca. Li hoje num de seus livros essa metáfora. Isso me rememorou a infância quando eu fazia a travessia de barco na Baía de Todos os Santos. Exatamente no lombo das águas, o casco do barco batendo nas ondas o tempo todo e aquela sensação de estar montado em alguma coisa. Mas só quem lembra disso são os poetas profundos. Eu nunca tinha lido isso em outro lugar. Eu tenho isso na minha própria dimensão interior. Mas nunca tinha escrito, nunca tinha me dado de que navegar pode ser também andar no lombo das águas. Naquele dia, naquele rio a musa disse isso a ele. A poesia é dona de si mesmo.
– O ministro tem que vadiar mais. Tem que arrumar ócio, diz Manoel.
– Depois que o presidente me mandar pra casa. Se eu for dizer por aí que você está me recomendando ócio, vai todo mundo comentar: o quê?!! O Manoel está pedindo ao ministro pra trabalhar menos. Aí, Manoel, você vai ter que se explicar com o presidente. Já pensou?
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Luis Turiba é pernambucano, criado no Rio de Janeiro, radicado em Brasília. Fundou a revista de poesia experimental BRIC-A-BRAC, em Brasília, em 1985. Na poesia, tem militância ativa há mais de 30 anos. Publicou seu primeiro livreto, Kiprokó, em 1977, no Rio de Janeiro. Em Brasília publicou Clube do Ócio, em 1980, Luminares, em 1982; Realejos, em 1988; a antologia Cadê?, em 1998; e Bala, em 2005. Em 2010, lançou dois livros em Brasília: “Meiaoito”, pela coleção Oipoema; e o infantil “Luísa, Lulusa: a atriz principal”. No jornalismo, trabalhou em O GLOBO e na Manchete, no Rio de Janeiro, ainda na década de 70. Chegou em Brasília em 1979, onde trabalhou na Gazeta Mercantil, no Jornal do Brasil, no Jornal de Brasília, no Correio Braziliense, onde cobriu a campanha das Diretas e a eleição de Tancredo Neves. Fez assessoria de imprensa para a Assembléia Nacional Constituinte e foi da equipe do Ministro Gilberto Gil no MinC por quatro anos. Publicou um livro com os principais discursos do ministro Gil, editou dois DVDs: Gil na ONU e Programa Mundial da Capoeira. Foi vencedor da Bolsa Literária FUNARTE em 2008, pelo qual escreveu seu livro “Meiaoito”. E-mail: turibapoeta@gmail.com
18 janeiro, 2013 as 11:17