Esfera de Eros
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O neologismo do título não oferece dificuldade: a exemplo de atmosfera ou biosfera, o livro promete uma “esfera de Eros”, isto é, o espaço onde o amor acontece. É preciso atentar ainda na rima interna – outra promessa, com seu leve toque de ironia. Brincar com a sonoridade das palavras (com as ideias, os sentimentos) faz parte da esfera do amor. E isto conduz a um segundo sentido. Se o “s” do título pertencer só a Eros (é assim que o ouvido capta), o amor se livra da “esfera” e se torna apenas “fera”.
O amor, segundo Camões, não “é ferida que dói e não se sente”? Então pode acontecer em qualquer lugar, até na estratosfera, e será sempre portador de delícias e estragos, já que (outra vez, Camões) “tão contrário a si é o mesmo amor”.
Para a maioria dos leitores, apegados às normas que regem a língua como sistema, “esfera do amor” é o primeiro e talvez único sentido do título. O segundo pode passar despercebido. Já para os desapegados de normas e sistemas, ligados tão somente à materialidade imediata, “amor = fera” é o sentido que se impõe, e a abstração generalizadora – as esferas onde isto ou aquilo deve acontecer – nem será levada em conta.
São duas maneiras de ler a instigante poesia deste erosfera. Qual delas escolher? Tanto faz, desde que nenhuma exclua a outra, a fim de que o paradoxo se mantenha intacto. Na verdade, não são duas maneiras de ler, mas apenas dois diferentes pontos de partida. Pode-se começar por qualquer um, mas convém saber que na linha de chegada se encontrará, naturalmente, o outro. Para então recomeçar, da capo sine fine.
Esta breve incursão nos meandros do título confirma o óbvio: erosfera é um livro que trata de lirismo e erotismo, e contém, de quebra, engenho e arte apurados, boa dose de sutileza. Por isso é um desafio e um elogio à inteligência do leitor.
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Uma de suas belas surpresas é o convívio entre sublimação espiritualizante e libidinosidade despudorada. Cúmplices, libido e espírito dividem a cena, sem atritos, nenhum torce o nariz para o outro, nem brada ou sequer insinua: “Ponha-se daqui para fora! Este é o meu lugar!”. Depois de séculos de separação, ambos sabem que partilham a mesma contraditória esfera de Eros, e chegam até a trocar gracejos de felicidade:
humano desejá-las todas a mulher tigre a princesa narda as vedetes emplumadas e as melângelas marias a PM de batom no metrô a garçonete do bistrô essa morena que passou e os olhos líquidos os lábios úmidos as sobrancelhas imperativas de sônia regina silva aranha uma que me embroma me embruma me embruxa em sua trama de chama e chuva ninho de musgo e pluma no centro da sua teia silvaranha de onde tecedestece a minha insônia
É um bom exemplo de amor “humano” e moderno, descolado: Eros do século atual, agora livre para que sua esfera se espalhe por todas as esferas. Sabemos bem que não foi sempre assim. Desde o tempo dos trovadores (medievais), sabemos que espírito e libido não devem ocupar o mesmo espaço. Por isso, aqui a doce e pura cantiga d’amor, ali a impura cantiga de escárnio, ou a de maldizer, mais impura ainda; aqui a mulher idealizada, distante e inacessível, ali a mulher próxima, feixe e objeto de instintos corruptores.
O problema é que eram a mesma mulher e o mesmo homem-poeta, mas a tradição não quis saber de conversa, obrigando-os a se separarem, cada qual no seu lugar. Não foi assim, porém, que tudo começou. No início da nossa tradição lírico-amorosa, espírito e libido confraternizavam, poeta e amada se deixavam docemente levar pelo coração e pela genitália e trocavam juras e licenciosidades, sabedores de que estas não fazem sentido sem aquelas, e vice-versa.
Estamos falando de Propércio, Tibulo ou Ovídio, e de tantos outros poetas latinos, de dois ou mais séculos antes de Cristo. Quer dizer, a ousada modernidade deste erosfera, a rigor, repõe em circulação o mais antigo da nossa já antiga tradição lírico-erótica. E, a propósito, o leitor conta com um atrativo extra. A edição bilíngue – cada poema é seguido de sua versão para o italiano – permite ouvir, a intervalos regulares, um pouco da doce-áspera melodia dos poetas da Roma antiga, com os quais a poesia de erosfera tem inegável afinidade. Mas, desde esse tempo remoto, o que se passou, afinal?
Foram séculos de constantes e emaranhadas metamorfoses, que acabaram por consagrar como verdade indiscutível, sobretudo a partir de Dante e Petrarca, no limiar da Idade Moderna, a incompatibilidade entre alma e corpo, espírito e matéria (em poesia, bem entendido), que passaram a ocupar cômodos separados: a sala de visitas para uns, o quarto de dormir, ou a alcova secreta, para os outros. Mais adiante, o erotismo foi francamente banido de cena, embora ninguém fosse capaz de impedir que continuasse presente na coxia, na plateia e nos largos espaços fora do teatro, assim como nenhum poeta foi capaz de expulsá-lo de suas fantasias mais ou menos secretas, conforme o século em que tenha vivido, amado e versejado.
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Difícil resistir à tentação de simplificar: a desinibição dos antigos latinos tem que ver com o espírito pagão que os animava, assim como o idealismo exacerbado, mais a decorrente demonização da sexualidade, se associam ao advento do cristianismo. Se não resistir à tentação, o leitor dirá, depois de ter contato com a poesia de erosfera: o cristianismo já era, o paganismo voltou. Pode ser, pode ser… Mas não exageremos. (Aos interessados em desenvolver sua curiosidade em relação a esta e outras especulações, recomendo o precioso ensaio de Paul Veyne L’élegie érotique romaine: l’amour, la poésie et l’occident.) De momento, melhor ficar com a ideia mais modesta de “teatro”, sugerida no item anterior.
É disso mesmo que se trata: poesia é encenação, o poeta representa um papel. (A famosa definição pessoana, “O poeta é um fingidor”, não é só uma frase de efeito.) Propércio e seus leitores sabiam muito bem da existência de uma certa cortesã de nome Cíntia, mas sabiam também que, uma vez trazida para o papel, e invocada em quase todos os poemas, a figura se transformava em ficção, pretexto para que o poeta inventasse a sua fantasia lírico-erótica, e até se divertisse um pouco com isso. A ninguém ocorreria supor que se tratasse de amores “verdadeiros”, realmente vividos pelos protagonistas.
Mais tarde, sim, a partir da tradição petrarquista, é que se tornou impossível distinguir entre verdade histórica e representação teatral. Os poetas abandonaram a encenação (ou melhor, deixaram de assumir a poesia como forma de encenação) e aderiram à conveniência de apostar na “sinceridade”. Os enredos amorosos e o entrecho narrativo, resultantes da ficção dos latinos, foram substituídos pela biografia dos poetas da era pós-Petrarca.
Levou algum tempo, mas o público leitor acabou por acreditar que, antes de chegar ao papel, a poesia lírico-amorosa teria passado pela “prova” da experiência de vida efetivamente vivida, e assim tem sido, entre nós, dos tempos de Camões até hoje. Mas agora aí temos o bom exemplo deste erosfera, a nos dizer que é tudo ficção, mesmo. A esfera de Eros é (voltou a ser?) o espaço da imaginação sem limites:
cássia põe as crianças na cama toma um banho demorado veste uma camisola vaporosa que deixa transparecer seus peitos seu púbis veludoso e telefona para o marido, piloto civil, no hotel, em Natal, a serviço de um sérvio e lhe deseja boa noite, querido, durma bem | então senta-se na cama na posição de lótus liga seu laptop a câmera acorda seu olho de brasa e ela diz bonsoir, gérard para seu charmant ciber amant, na rue du faubourg, montmartre, no 46, 3o piso, Paris
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O contraponto está logo ali, no poema vizinho (é só reparar na ironia da rima e do refrão):
………………………………………………um dia diz que te adora
……………………………………………..outra hora te menoscaba
……………………………………………………sempre acaba
……………………………………………..reconta lances romances
……………………………………………..de um ex-amante se gaba
…………………………………………………….sempre acaba
……………………………………………quem meu anjo te chamava
………………………………………………….ora te fere – diaba
…………………………………………………….sempre acaba
……………………………………………..e amor que te embalava
…………………………………………………palácio de plumas
………………………………………………………..desaba
……………………………………………………sempre acaba
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Outra bela surpresa é a ausência da musa inspiradora, como foi de praxe, durante muito tempo. Crente na ficção da “sinceridade” biográfica, o leitor não admitia que, por trás de todo grande poeta, não houvesse uma amada de eleição, única e poderosa, origem e ponto de convergência de toda floração lírico-erótica: Dante-Beatriz, Petrarca-Laura, Camões-Dinamene, Dirceu-Marília, Hoelderlin-Diotima, Breton-Nadja e por aí vai. Não assim com o poeta de erosfera: o seu amor-fera é adepto da variedade, não só porque suas esferas se espalham por todos os cenários, como também (ele próprio o afirma) porque, em matéria de musa inspiradora, é “humano desejá-las todas”.
Por fim, este Eros moderno acaba de vez com um dos mitos da nossa cultura, o de que é possível separar realidade de ficção, vida real de vida imaginada. É só pensar no “ciber amant” de Cássia, em Paris, tão real e verdadeiro quanto o marido, em Natal – ambos ausentes. O fato é que a ficção, ou a encenação poética, tem sido desde sempre tão convincente e tão “realista” exatamente porque a realidade em torno não passa (nunca passou?) de fantasia. Mas agora não precisamos mais nos preocupar em distinguir uma coisa da outra.
A plateia dispensou os atores, fechou o teatro e transformou em palco o mundo inteiro. “La vida es sueño”, diz Calderón de la Barca, no Siglo de Oro. O nosso século de Eros será ainda mais ouro e mais sonho. Depois de tanto tempo de marginalidade, a transgressão erótica já não precisa (não consegue?) transgredir: virou norma. A esta última talvez reste vir a ser adotada pela Nova Transgressão que aí vem. Não vem? The show must go on.
Mas isso não impede (ao contrário, recomenda) que lembremos, na antecâmara deste aliciante erosfera, a mesma advertência que Camões, dirigindo-se ao leitor, antepôs à sua lírica (o muito velho e o muito novo, outra vez, conjugados): “segundo o amor tiverdes, / tereis o entendimento dos meus versos”.
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Carlos Felipe Moisés nasceu em São Paulo, SP, em 1942 e estreou como poeta em 1960, tendo ingressado em seguida na Universidade de São Paulo, como aluno de Letras. Mestre e doutor em Letras Clássicas e Vernáculas, tornou-se professor universitário, tendo ensinado teoria literária e literaturas de língua portuguesa na Faculdade de Filosofia de São José do Rio Preto (1966-68), na PUC de São Paulo (1967-1970), na Universidade Federal da Paraíba (1977) e na USP (1972-1992). Passou várias temporadas no Exterior – em Portugal e na França, como bolsista, e nos EUA, como escritor residente em Iowa City (1974-75), e como professor visitante na Universidade da Califórnia, em Berkeley (1978-1982), e na Universidade do Novo México (1986). Como poeta, recebeu vários prêmios, entre os quais o Governador do Estado de São Paulo (Carta de marear, 1966), o Gregório de Mattos e Guerra, da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Círculo imperfeito, 1978) e por duas vezes o APCA, Associação Paulista dos Críticos de Arte (Poemas reunidos, 1974, e Subsolo, 1989). Seu livro de poesia mais recente é Noite nula (2008), finalista do Prêmio Portugal Telecom. Como crítico, tem-se dedicado especialmente à poesia dos séculos XIX e XX, com relevantes trabalhos sobre Cesário Verde, Fernando Pessoa, o Surrealismo, Vinícius de Morais, João Cabral de Melo Neto e poetas brasileiros contemporâneos. Entre seus livros nessa área, destacam-se Poesia e realidade (1977), O poema e as máscaras (1981), O desconcerto do mundo (2001) e Poesia & utopia (2007), Tradição & ruptura: o pacto da transgressão na literatura moderna (2012). É também autor de livros infanto-juvenis, entre os quais O livro da fortuna (1992), A deusa da minha rua (1996) e Conversa com Fernando Pessoa (2006), este último distinguido com o prêmio FNLIJ, Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. Recentemente, estreou como contista, com a coletânea Histórias mutiladas (2010), Prêmio Governo do Estado de Minas Gerais, Melhor Livro de Ficção. Tradutor, verteu para o português, entre outros, Tudo o que é sólido desmancha no ar, de Marshall Berman (1986) e O poder do mito, de Joseph Campbell (1990). É responsável, juntamente com Richard Zenith, pela curadoria da primeira exposição a homenagear um autor português, Fernando Pessoa, no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. E-mail: carlos_moises@uol.com.br
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