João Antônio, e só!


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João Antônio Ferreira Filho (27/01/1937 – 31/10/1996) nasceu em São Paulo, capital, no então subdistrito de Osasco, hoje município emancipado, em 52. Descendia direto de imigrante português, o pai, vindo de Trás-os-Montes, nordeste de Portugal. Menino de periferia, viveu num tempo em que era possível não apenas cruzar, mas conviver com a chamada marginalia sem os riscos que hoje isso representa. Biscateiros, desempregados, pedintes, crianças abandonadas ou quase, operários do trabalho mais pesado, prostitutas, soldados de precário autoritarismo, jogadores de sinuca (que ele aproveitou como ninguém no livro de estreia, Malagueta, Perus e Bacanaço, de 1963), guardadores de automóvel, surfistas ferroviários, gente, enfim,  que se reúne nos cenários da periferia, vilas e favelas com seus botequins, seus campos de pelada e as diversas corriolas do vício e do crime. A tanto não chegou na convivência direta, mas mais tarde, como jornalista, assim que se formou, foi atrás dessas raízes onde buscou material para o conjunto de sua obra. A parte literária mais importante presente em Contos reunidos.

Volume extremamente bem organizado, reúne sua contística Malagueta…, Leão de chácara (1975), Dedo-duro (1982) e Abraçado ao meu rancor (1986), além dos dispersos e inéditos. Não bastasse material tão “nobre”, completa essa edição caprichada (rotina em se tratando da editora, que faz acompanhar a obra uma caderneta, Vocabulário das ruas, “recolhido por João Antônio”), dois perfis jornalísticos com forte influência do new jornalism, em que matérias produzidas direto para jornais recebem uma linguagem ficcional, caso de Um herói sem paradeiro, com dois perfis. Há ainda um João Antônio por ele mesmo, em que o autor depõe sobre sua personalidade e especificamente o primeiro livro e Abraçado ao meu rancor, com o qual encerraria o ciclo de contos, provavelmente embretado num projeto estético-antropológico que já começava a não fazer sentido nos novos ares políticos brasileiros, segundo bem observa Rodrigo Lacerda, na “Apresentação”. Contos reunidos traz também uma Fortuna crítica, com a qual nossa leitura encontra uma ressonância mais forte através da análise tão arguta de, por exemplo, Antonio Candido, em “Na noite enxovalhada”, e Alfredo Bosi, com seu artigo “Um boêmio entre duas cidades”.

As cidades são simplesmente as “capitais culturais e econômicas” do País, São Paulo, de onde brotou toda a semente amarga da obra do escritor, e Rio de Janeiro, quando ele pode expandi-la mais, onde também morou, trabalhando nas redações do Jornal do Brasil, da Manchete e Fatos e Fotos. A carreira jornalística, aliás, sustentou João Antônio até o início dos anos 1970, tendo ele feito parte da equipe da prestigiosa revista Realidade. Onde durou o mesmo tempo que a linha editorial num “corpo a corpo com a vida” – expressão cunhada por ele para todo e qualquer produção textual sua –, e que logo, por pressões políticas e de anunciantes, teve de atenuar pautas, linguagem, até chegar ao ponto de trocar toda a equipe, inclusive o editor, obviamente.


[O que “Contos reunidos” tem a ver com o russo Ivan Gontcharóv? Veja aqui]

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De Lima Barreto a Graciliano Ramos
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Com 26 anos, morando ainda com os pais, chegava à sua casa três escritores, membros da comissão julgadora que lhe consagrara com o Prêmio Jabuti. Um deles, Ricardo Ramos, também escritor (hoje esquecido), filho de Graciliano. Ricardo, se não herdara o talento do pai como literato, herdara o de bom leitor. E reconheceu de imediato um estilo, mais que uma ótica, que lembrava a escrita a carvão do autor de Vidas secas. Menos poetizada (a poesia da prosa cortante), mas capaz de uma síntese onde toda uma humanidade de situações e personagens cabia num parágrafo, às vezes numa frase.

Não bastasse, ao estilo impositivo soma-se uma renovação alimentada por uma fala particularmente popular. Sem a frouxidão desta, mas bebendo da mesma fonte, e fonte das mais fundas. Gírias são agregadas. Frases em 3ª pessoa do singular que antes nenhum escritor teria a ousadia de escrever senão na 1ª pessoa, e na voz de um pingente.

Sem disfarçar, nunca!, João Antônio trazia à tona o que Lima Barreto trouxe na abertura do século XX. A periferia. Uma voz brasileira como nunca antes pudéramos ler. Após a estada no Rio, João Antônio começa a dedicar todos seus livros para “Afonso Henriques de Lima Barreto / pioneiro /consagro”, variando a forma mas não o sentido. Filiava-se, deste modo, sem esperar que a crítica o empurrasse para algum cânone ou o esquecimento.

Não há como. Seu realismo empurra o que seriam contos (como “Malagueta, Perus e Bacanaço”), com suas 42 páginas, para a estrutura de uma novela, tantos são os elementos utilizados na composição dessa história de três perdidos numa noite suja, para lembrarmos um outro autor (neste caso do teatro) da mesma família, Plínio Marcos. “Paulinho Perna Torta”, emblema irretocável do malandro carioca, com suas mais de trinta páginas, numa diagramação especial virou livro-solo, novela. Mesmo antes sendo um dos contos de Leão de chácara.

 

Esquecimento – Pausa

Atravessando a década de 1990 como um nome datado, para alguns até mesmo superado – provavelmente pela radicalidade com que se armou até os dentes o mundo então quase inocente que ele flagrara trinta anos antes –, sem contar a expansão de uma literatura para a classe média, que o autor, militante dos miseráveis, desprezara, como um mundo medíocre do qual nada podia sair, até morrer passou os últimos anos organizando coletâneas com material requentado, produtos híbridos se comparados com o que fizera até então. E o que fizera até então está incólume em Contos reunidos, tão datado quanto datados são Lima Barreto, Graciliano Ramos e todo o artista fiel a seu tempo.

 

 

 

Serviço

Título: Contos reunidos
Autor: João Antônio
Apresentação: Rodrigo Lacerda; fortuna crítica: Antonio Candido, Tânia Macedo, Jorge Amado, Paulo Rónai e Alfredo Bosi
Ilustrações: Carlos Issa
Editora: Cosac Naify
Páginas: 608

 

 

 

 

 

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Paulo Bentancur (Santana do Livramento, RS, 1957; mora em Porto Alegre há 45 anos) é escritor de diversos gêneros. Instruções para iludir relógios (prosopoemas, 1994), Bodas de osso (poemas, 2005), A solidão do Diabo (contos, 2006), Três pais (infanto-juvenil, 2009), além da coleção Brincando de pensar (2001), sobre gênios do conhecimento humano tanto na filosofia quanto na arte, recontados para pré-adolescentes. Crítico literário, colabora na imprensa cultural do País desde o início da década de 1980. Teve textos publicados na Argentina, México e Itália. Ganhou cinco vezes o prêmio Açorianos de literatura, nas categorias infantojuvenil, poesia e especial (livros de gênero inclassificável). Ministra oficinas de criação literária on line e individual em seis gêneros (conto, romance, crônica, poesia, infantojuvenil e ensaio). Foi jurado de diversos concursos entre os quais o Prêmio Jabuti na categoria romance. Site: www.artistasgauchos.com.br/paulob. E-mail: bentancur@uol.com.br





Comentários (3 comentários)

  1. José Mattos, De João Antonio li e reli, Dedo-duro, e só. Estilo cortante a palavras pesadas que soam como bate estacas. É preciso paciência para seguir adiante, mas também é complicado largar a leitura depois de pegar o ritmo.
    14 maio, 2013 as 14:17
  2. Salvador dos Santos Filho, Malagueta, do João Antônio é muito bom. Agora os contos reunidos devem ser melhor ainda. Abração Paulo Betancur
    14 maio, 2013 as 15:29
  3. nancy paiva dias amarante, Análise precisa e convidativa! Não li, mas vou!
    26 setembro, 2014 as 13:50

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