O verdadeiro herói da antiodisseia
.
Oblómov, de Ivan Gontcharóv (1812-1861), apareceu no Brasil, em tradução do francês, em 1966, embora o romance seja de 1859. As brutais diferenças tanto idiomáticas quanto a particularidade da prosa singular do romancista que precedeu de tão perto a geração de Dostoiévski, Tolstói e Tchecov, fazem desta versão enfim feita direto do russo – por um especialista, Rubens Figueiredo – um acontecimento duplo. Some-se à saudável onda de importantes obras vertidas direto da língua de Gógol, o que vem acontecendo há vinte anos com constância, a reposição no mercado de um dos maiores romances de todos os tempos. Com um detalhe: muita gente boa não sabe disso.
O motivo principal, talvez, seja o fato de Gontcharóv ser o autor de um livro só (afora os outros dois que publicou em vida, um antes, outro depois de Oblómov, mas que nem de longe tiveram o impacto deste). De tal forma que, se algo ficou na poeira do tempo, foi a sonoridade do nome do protagonista, homônimo do título, e a partir do romance mesmo, na última cena, capaz de gerar um neologismo inclusive dicionarizado – substantivo encontrável até no nosso Volp e com cerca de 10.000 referências no Google.
Oblomovismo.
O que seria isso? Para a crítica da época, algo mais ligado à ciência que à arte. Uma espécie de distúrbio, uma doença e não a tipificação de uma particularidade psicológica que, esta sim, enriqueceria, e muito, a personagem.
Tanto a enriqueceria (e enriqueceu) que ao lado de Iliá Ilitch Oblómov, nome de batismo, poucos outros nomes se alinharam para compor uma família bastante nobre: Ulisses, Hamlet, Dom Quixote, Madame Bovary e, claro, Bartleby, o escrivão: uma espécie de primo pobre de Oblómov, que o antecedeu em publicação por seis anos. Bartleby, trabalhando numa repartição, respondia aos superiores assim que recebesse uma ordem, “preferiria não fazê-lo”. E não fazia! Oblómov, que tem 32 anos no começo do romance (dividido em quatro partes, as três primeiras muito similares, e a quarta dando uma guinada mais rápida rumo ao desfecho), é um abastado proprietário de terras e de mil servos. A posse, no entanto, não o induz à febre produtiva dos abastados. Muito pelo contrário.
Oblomovismo
.
O caudaloso romance de Gontcharóv (que Tolstói leu e releu) miraculosamente – desses milagres que só a literatura e um texto extremamente bem estruturado e escrito conseguem – passa das 600 páginas sem “nenhum” enredo, só situações que se apresentam como possibilidades, promessas, acenos, quando não necessidades cotidianas que a servidão, com seus dias contados na Rússia czarista, resolve sem que o patrão sequer se dê conta. Consterne-se o leitor que ainda não teve a sorte de folhear o volumão: atravessamos um oceano de diálogos, monólogos, sketchs humoradas, e tudo está alinhavado sem deixar uma ponta solta. Faz sentido. O tema, afinal, é Oblómov, sua placidez, sua preguiça, sua contemplação, seu mundo imerso numa beatitude que nem por isso se regala: o romantismo e seu messianismo ficaram para trás e ele simplesmente se deixa estar. Exemplo? Até a página 219 da edição recém-lançada o personagem central não sai da cama. Quando sai, é para receber, com um raro entusiasmo, o “alemão” Stolz, o contrário dele, um trabalhador, investidor, homem esfalfado na busca de fortuna e paixões. É quando termina a primeira parte.
Com capítulos em média de 30 páginas, destaque-se o capítulo IX (o único com título), com o dobro do tamanho dos demais, semente para o romance inteiro e que, de várias formas, o explica, mas sobretudo justifica a “letargia” do oblomovismo.
Nele há um sonho, a infância protegida, e o nascimento de uma crença feita de sutis descrenças. Paraíso sem promessas no qual jamais passaria a sombra de um inferno. Sonho essencial que decerto terá instaurado no jovem Oblómov a não-espera por qualquer evento prometedor e, sequer, por nenhuma ameaça.
Importante elemento agregador a esse equilíbrio em um personagem nunca dado a rompantes, bem o oposto, a linguagem do romance é de uma simplicidade elegante e realista (conforme a escola a que o romance se inscreve), e assim não gera solavancos que sua própria emoção não conhece.
O único caso amoroso, aliás, fruto de uma iniciativa do amigo Stolz, não frutifica (a prometida acaba mesmo é com Stolz, cuja iniciativa granjeia-lhe resultados que o romance, num subtexto, aponta como discutíveis). Oblómov, que nunca sairá de Petersburgo, ainda se mudará para os arredores e depois voltará para uma região mais central. Isso em hipótese alguma representará a essência de uma mudança, senão de um deslocamento.
Habitante absoluto de si mesmo, o protagonista se expõe somente quando se entrega às demoradas conversas com o criado Zakhar (seu Sancho Pança sem sonhos de ilha alguma). Bem observado, é nas falas de Zakhar que vemos, geralmente de forma caricata, mas não menos convincente, Oblómov e sua inação. Quando fora da cama, oscila em movimentos brandos, de tal maneira que não possam lhe modificar nem o próprio destino, nem o dos outros.
Nesse sentido, ironicamente, o “homem omisso” – como poderia ser acusado – não causa danos nem se submete a eles, sustentando, na recusa ao esforço, valores éticos que a sanha dos empreendedores põe a perder.
Mas a questão central, para Gontcharóv, parece mesmo a de que os “senhores de engenho” da Rússia dos czares eram figuras a representar o homem supérfluo, figura alegórica num mundo de penoso trabalho. Mais que os poderosos, porém, Oblómov não quer o que todos parecem querer: prêmios que ele nem discute, ao ponto de no desfecho, quando morre, já passando da meia-idade, o amigo Stolz lamentar a “vida desperdiçada” e simultaneamente reconhecer que se tratava de uma alma nobre, gentil, e sublinhar que “não era mais tolo que os outros”. Observação essencial para quem lhe confundir a legítima natureza de seu desinteresse. De conteúdo mais filosófico do que aparenta.
Serviço
Título: Oblómov
Autor: Ivan Gontcharóv
Tradutor: Rubens Figueiredo
Posfácio crítico: Renato Poggioli
Editora: Cosac Naify
Páginas: 736
.
Paulo Bentancur (Santana do Livramento, RS, 1957; mora em Porto Alegre há 45 anos) é escritor de diversos gêneros. Instruções para iludir relógios (prosopoemas, 1994), Bodas de osso (poemas, 2005), A solidão do Diabo (contos, 2006), Três pais (infanto-juvenil, 2009), além da coleção Brincando de pensar (2001), sobre gênios do conhecimento humano tanto na filosofia quanto na arte, recontados para pré-adolescentes. Crítico literário, colabora na imprensa cultural do País desde o início da década de 1980. Teve textos publicados na Argentina, México e Itália. Ganhou cinco vezes o prêmio Açorianos de literatura, nas categorias infantojuvenil, poesia e especial (livros de gênero inclassificável). Ministra oficinas de criação literária on line e individual em seis gêneros (conto, romance, crônica, poesia, infantojuvenil e ensaio). Foi jurado de diversos concursos entre os quais o Prêmio Jabuti na categoria romance. Site: www.artistasgauchos.com.br/paulob. E-mail: bentancur@uol.com.br
12 março, 2013 as 19:01
12 março, 2013 as 19:35