Três promessas
………………………….. by Mestre Vitalino
Havia naquela cidade uma pequena família muito respeitada e harmoniosa por seus talentos de carpintaria e vendas. O pai fabricava utensílios perfeitos de madeira e o filho costumava circular pelas redondezas vendendo-os com facilidade e sempre – as pessoas o consideravam tamanho vendedor, que se envergonhavam de deixá-lo retornar, um dia que fosse, sem alguma venda. Todos com fidelidade o amavam e a sua família.
Um dia, o pai, por um motivo qualquer (um copo d’água não servido, ou mal servido…), foi ameaçado de morte. Ninguém acreditava em cabo daquilo, vinda a ameaça de quem vinha: o bêbado mais prostrado e contente do lugar. Poucos dias depois, porém, muitos estavam na praça quando de um arbusto surgiu o homem, armado e sóbrio, e abriu uma facada irreversível no abdômen do carpinteiro, escapando depois, com estranha inteligência, pelo horizonte.
O carpinteiro, então, agonizava. O filho, que estava em viagem, ao receber o recado, o sangue tomando-lhe os olhos talvez pela primeira vez na vida, sussurrava algo que mesmo os que o abraçavam não conseguiam ouvir: prometia compulsivamente a si mesmo que mataria o assassino. E mais, mataria-o tão bem ao ponto de lhe cortar a cabeça… Queria, enfim, levar isso consigo pelo resto da vida, por onde quer que fosse, e sem amém. Chegando em casa, encontrou o pai já no leito de morte. Antes de se despedirem, o pai jurou reconhecer que tinha uma espécie de culpa e o fez prometer que jamais tocaria no homem que o havia esfaqueado. O filho, a profundo contragosto, prometeu. E choraram juntos.
Após o enterro, a mãe sacudiu-o do silêncio e obrigou-o a conversar com ela: fez-lhe um pedido: que ele prometesse que ia, sob Deus e Sua glória, pôr todos os seus inimigos (aquele e todos os que quisessem um dia se revelar) debaixo dos próprios pés. O filho, surpreso e cúmplice, prometeu.
À noite, em sua cama, o corpo trêmulo remoía a ousadia de ter feito três promessas em um único dia, apenas por isso mesmo tão desencontradas. Mas não podendo ser menos que provável sua vingança, teria que descobrir como cumpri-las todas.
E descobriu.
Em primeiro lugar, contratou um matador contra o assassino. Com isso cumpria a primeira e a segunda promessa: mataria, arrancaria-lhe a cabeça, porém sem jamais o tocar. Quando o matador lhe jogou aos pés a cabeça, ordenou que a erguesse do chão e olhou-a nos olhos. Como já esperava, não sentiu pena do homem. Nem de si. Disse, então, ao matador que embrulhasse a cabeça no tecido mais firme que pudesse encontrar, amarrando-a com as cordas mais resistentes, e que sumisse com o corpo. Feito isso, o rapaz, enfim, pôs seu pé direito sobre a cabeça, cumprindo assim a terceira promessa.
Dali em diante, embora ninguém jamais tivesse lhe cobrado explicações, todos refinavam, conversa a conversa, suas teorias sobre o que seria aquele objeto, de pancadas surdas e a cada dia mais redondo, que o vendedor, sempre o mesmo bom rapaz, fazia rolar pelo chão à sua frente, por onde quer que fosse, e sem amém.
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Victor Paes é escritor, ator e editor da Confraria do Vento. Publicou os livros de contos Deus ex machina (Confraria do Vento, 2011) e Mas para todos os efeitos nada disso aconteceu (Dulcineia Catadora, 2010), além do livro de poesia O óbvio dos sábios (Confraria do Vento, 2007). Tem publicados seus contos e poemas em diversas revistas e sites. Participou das coletâneas 24 letras por segundo (Não Editora, 2011), organizada por Rodrigo Rosp, e XXI poetas de hoje em dia(nte)(Letras Contemporâneas, 2010), organizada por Priscila Lopes e Aline Gallina. Publica o blog www.victorpaes.blogspot.com E-mail: victorpaes@confrariadovento.com