À minha filha, caso um dia nasça


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Antes de tudo, minha filha, saiba que nesse momento você possui uma vantagem imensa em relação a nós que já nascemos: no estado em que você está, nada vai para um lado ou para outro. Aqui o que não faltam são teorias sobre o que seja ir para um lado ou para outro. E dessa angústia, caso um dia nasça, você não vai escapar. Aqui é um território de bichos que olham as coisas e, ao mesmo tempo, realizam essa operação cerebral humana muito sofisticada e difícil de explicar que é pensar sobre as coisas. E fazemos isso tão distraidamente bem, que em algumas situações chegamos simplesmente a esquecer que estávamos parados olhando uma coisa. Pois bem, é esse bicho que você, caso nasça, vai ser.

Um dia você vai parar para olhar essa coisa aqui que chamamos texto (mas que já é própria mesmo para não só olhar) e vai pensar sobre a loucura que estou propondo, que é você já estar existindo a partir do momento em que eu o escrevo. Essa loucura é um dos resultados de uma necessidade profunda que nós, esses bichos, temos, de, ao pensar, decidir coisas desse tipo: quando a vida começa e acaba, se somos bichos ou bichos que deram errado, se devemos, por isso, matar ou morrer para sermos corretamente o que seríamos… E ficamos tentando decidir essas coisas apenas por acharmos que é possível que um dia decidamos.

Isso acontece porque essa operação de pensar acontece sob a eletricidade de esquemas, em nosso cérebro, de organização de ideias e memórias tão caprichados, que têm como uma de suas funções básicas delimitarem-se e, além disso, ocultarem a si mesmos. E isso é muita loucura. Talvez a primeira vez que você vá pensar sobre isso seja apenas no momento em que ler esse texto. Pois muitos desses esquemas vão ser ensinados a você tão impetuosamente desde pequena, principalmente por mim e por sua mãe, que vão ser sempre muito difíceis de serem rastreados. A ponto de você, ao acabar de ler esse texto, decidir que é tudo besteira. E talvez seja. Eu mesmo falo desses esquemas de dentro deles e aí não pode haver nenhuma promessa de isenção. A própria ideia de isenção é algo de dentro deles. Assim como a exigência de isenção. Ou seja, não há para onde correr. A não ser para aí onde você está. Mas há gente aqui que pensa que isso é crime.

Bem, com esses esquemas, tudo parece muito simples e seguro, pois dentro deles estamos a salvo de uma coisa chamada aleatório. Esse aleatório nos assombra demais, muito antes de se concretizar, e foi decidido que, por isso, ele faz mal para nós. Então o que se faz com muito empenho é não deixar que ele pareça fazer parte dos próprios esquemas e que não tenha inclusive originado a maioria deles – isso é loucura demais para nós. Empurrar para baixo do tapete é o mais sensato a fazer sempre. Pois tudo é muito mais louco do que poderíamos aguentar. Olha, por exemplo, o que estou fazendo aqui, minha filha. Estou fazendo uma série de desenhos ancestrais usando uma substância líquida sobre um objeto branco, resto de árvores, para que um dia você os interprete e seja induzida a pensar o mesmo que estou pensando agora, sobre a loucura que é escrever. Mas faço isso mesmo sabendo que, no fundo, o que escrevi é completamente diferente do que eu pensei e que o que você vai pensar é completamente diferente do que pensei e do que escrevi. E isso vai acontecer com qualquer um que ocasionalmente o leia também. Comunicar-se, minha filha, conhecer os outros é fraudar. Conhecer a si é fraudar. É essencialmente loucura. E também muito simples. Se um dia você achar muito simples conhecer bem a si, vai ser obrigada a reconhecer que é muito simples, mas também muito louco. Você nunca conhecerá bem nem o próprio corpo em que vai estar. Vamos a exemplos muito simples: primeiro, você nunca vai ver seu rosto (todos poderão ver, menos você)… há essas coisas chamadas espelho, fotos, vídeos, mas são fraudes, apenas representações – aliás, não há nada, mesmo sob nossos olhos límpidos por aí, que não seja (e cada um que lhe vir estará sempre vendo uma pessoa diferente – imagine quantas pessoas você vai ser pelas ruas todos os dias, sem nunca saber e sem nunca poder ser alguma delas outro dia novamente). Com sua voz vai acontecer o mesmo (apenas a sua será terrível). A própria sensação de estar dentro de um corpo, que você vai ter, é loucura, pois não há dentro: você vai ser a própria coisa que se pensa como outra de si mesma. E se tudo isso já é difícil consigo, imagine com os outros. Até porque, vivendo em grupo, inventamos muitas loucuras que pretendemos coletivas, como se já não bastassem essas de nossa natureza. Você vai conhecer todas. Política, religião, esportes, coisas pelas quais chegamos a morrer, escravos fidelíssimos que somos. Por falar em morte (um dos aleatórios mais assombrosos), quer saber uma loucura sobre ela? Seu velório vai ser um dos eventos mais importantes de sua vida e justamente você não vai estar presente. Não é loucura?

E o que mais não é? Guerras, festas, múmias, os quanta… matadores de aluguel, canivetes suíços, bichos de pelúcia… trabalhos em grupo, Photoshop, ferros-velhos, assinaturas, papai-mamãe, escovas de dente, dentistas… presilhas de cabelo…

Enfim, minha filha, no meio dessa loucura toda, acredite, não vim lhe assustar. Nem lhe dar conselhos. Na verdade não há algum conselho que eu possa lhe dar. Se você vier um dia a nascer, eu vou lhe dar muitos. Mas você vai odiar todos eles. Quis apenas aqui que você tivesse uma visão geral da vida (porque é só o que no fim a gente pode mesmo ter). Pois existem muitas outras loucuras de que não falei (quem sabe um dia lhe escreva de novo). Na vida de cada um, a maioria delas orbita em torno de uma ou duas que a própria pessoa escolhe para chamar de “missão”. Por exemplo, posso lhe falar da minha. Aquela a que escolhi me dedicar – e talvez, como muitos que a escolhem (por que não?), morrer por ela. É uma das menos desvairadas (ao contrário do que dizem), pois é uma das poucas que se reconhecem como loucura – loucura de loucuras. É a arte. Você, minha filha, vai ter contato com ela todo o tempo de sua vida. Mas tudo vai sempre levá-la a achar que ela é só uma companhia, uma fuga entre outras. Talvez você nunca saiba o quanto ela vai fazer parte da pessoa que você será. E que, se não fosse ela, talvez o ser humano se suportasse bem menos do que o pouco que ainda suporta. Ou talvez não, nem sei. Não importa. Importa é que pelo menos um pouco a arte sabe sobre os esquemas, sobre parar para olhar as coisas, sobre todo tipo de assombro, sobre nossas fraudes, escravidões e velórios. E por ela saber um pouco é que temos a impressão de que sabemos também. No fim de tudo, o que nos importa mesmo é isso, a impressão.

Saiba disso, então, minha filha, que, caso um dia nasça, a diferença que vai haver de onde você está para cá é que agora você não sente nada, mas quando estiver aqui vai sentir às vezes uma forte impressão de estar viva, de existir. Como eu sinto agora. Mas que essa impressão, claro, como toda impressão, é coisa que dá e passa.

 

 

 

 

 

 

 

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Victor Paes é escritor, ator e editor da Confraria do Vento. Publicou os livros de contos Deus ex machina (Confraria do Vento, 2011) e Mas para todos os efeitos nada disso aconteceu (Dulcineia Catadora, 2010), além do livro de poesia O óbvio dos sábios (Confraria do Vento, 2007). Tem publicados seus contos e poemas em diversas revistas e sites. Participou das coletâneas 24 letras por segundo (Não Editora, 2011), organizada por Rodrigo Rosp, e XXI poetas de hoje em dia(nte)(Letras Contemporâneas, 2010), organizada por Priscila Lopes e Aline Gallina. Publica o blog www.victorpaes.blogspot.com E-mail: victorpaes@confrariadovento.com




Comentários (7 comentários)

  1. Aderaldo Luciano, Que sua filha, querido Victor, repouse em paz e não se atreva a vir nos fraudar.
    18 julho, 2012 as 19:49
  2. Rachel Tirre Freire, Deixar algo escrito para a filha que ainda não nasceu é fantástico.Gosto mesmo de sua escrita;seus desvarios….Lembrei-me das aulas que partilhei hoje com meus alunos….
    19 julho, 2012 as 2:33
  3. Daniel Lopes, Vc me faz pensar o quanto é inútil tudo que se faça, seja filosofia ou jogo da velha. No final da vida só nos resta a própria não cabe em palavras, por mais que tentemos prendê-la, é sempre como tentar prender um por do sol num vidro vazio de maionese. Como disse Clarice: Não se preocupe em entender, viver ultrapassa todo entendimento. Entre nonada e o infinito, só a travessia. Tenho um menino de cinco anos e tb tenho escrito muito pra ele e sobre ele. Acertou de novo, parceiro. Abraço.
    19 julho, 2012 as 18:28
  4. Andrea Carvalho Stark, espero conhecê-la um dia e que ela faça seu pai descobrir que ela própria, antes de vir, era a arte que um dia ele lhe fez sentir. Bjss!!!
    19 julho, 2012 as 23:29
  5. Denise Velasco, É maravilhoso! Obrigada Andrea, já tinha ouvido falar deste Vitor mas é de uma carpintaria inesquecível esse seu texto. Amei! Aproveito e ressalto: ” Estou fazendo uma série de desenhos ancestrais usando uma substância líquida sobre um objeto branco, resto de árvores, para que um dia você os interprete e seja induzida a pensar o mesmo que estou pensando agora, sobre a loucura que é escrever. Mas faço isso mesmo sabendo que, no fundo, o que escrevi é completamente diferente do que eu pensei e que o que você vai pensar é completamente diferente do que pensei e do que escrevi.” beijos!
    19 julho, 2012 as 23:38
  6. Fernando Rocha, Muitas reflexões: Existência, Arte, Metalinguagem do ato de escrever. E só uma certeza: A impressão. Talvez Sófocles estivesse certo quando escreveu que “seria melhor não ter nascido”, mas a gente que já está por aqui precisa encontrar alguma maneira para passar o tempo. Gostei da mescla de gêneros: Conto/carta pessoal. A ideia de escrever para um não ser é muito boa.
    21 julho, 2012 as 16:58
  7. chico lopes, Victor: Belo texto. E te conto que, embora ainda não te conheça como escritor, estou pra conhecer: Ronaldo Ferrito passou aqui por Poços de Caldas e deixou-me alguns livros da Confraria, inclusive o teu “Deus ex-machina”, contos. Pelo aperitivo deste texto pra tua filha não nascida, acho que vai ser bom. Abraços
    25 julho, 2012 as 13:19

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