A polêmica sobre Baco: resposta


……..A POLÊMICA SOBRE BACO: RESPOSTA A HÉLDER MACEDO

 

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Professor Hélder Macedo

 

Os seus informantes informaram-no mal.

Eu não o ataquei.

Pelo contrário: denunciei um ataque.

Denunciei em âmbito público mais alargado um ataque já de antes denunciado em círculos mais restritos, e em comunicações privadas, inclusive com o senhor.

Denunciei-o, não em redes sociais e sim, através de relato, na revista MUSA RARA.

Publicado o texto em sua forma digital, foi compartilhado em páginas do Face Book, espaço livre para manifestações, que em si próprio a ninguém desabona, podendo ser usado, como instrumento eletrônico, tanto para o bem quanto para o mal, tanto para a mentira quanto para a verdade.

Mas, ao que parece, os seus informantes não tiveram o cuidado de passar-lhe o texto de minha denúncia, pois em seu texto “Camões e Baco nas Redes Sociais”, publicado na revista Caliban, o senhor se refere apenas à repercussão que ele causou nas redes sociais, sem responder aos tópicos de minha denúncia. Eis porque volto ao tema, corrigindo o desvio dado ao assunto.

Denunciei um ataque contra minha tese a partir de sua defesa, na UFRJ, em 2001, e reincidente até o momento presente, em progressivos avanços.

 

Passemos aos factos.

 

1.

Na ocasião da defesa, a originalidade da minha tese foi entusiasticamente exaltada pela argüente sua amiga, Teresa Cerdeira, que se pronunciou verbalmente quanto a essa originalidade, registrando os comentários num manuscrito que me entregou e guardo até o presente, no meu dossier-Camões. Na mesma ocasião, porém, a referida argüente investiu contra o trecho da tese que discordava da tese do “amor misto” n’ Os Lusíadas, segundo a qual, naquela altura, o senhor afirmava que o propósito simbólico da viagem, no poema, seria a regeneração do “baixo amor”, representado por Baco e Adamastor, pelo “amor sublime”, representado por Vênus:

Em contraste com o erotismo espiritualmente regenerador que Camões personifica em Vênus, Baco – o deus cujo poder se manifesta na embriaguez e na desmembradora submissão orgiástica da razão aos sentidos – significa o baixo amor. No contexto do esquema iniciático da obra, a identificação de Baco com o baixo amor ganha uma importância fundamental na medida em que, mitologicamente, era não só o senhor da Índia que os Portugueses demandavam, como também o pai de Luso, o antepassado mítico dos Portugueses. Tal importância fundamental não impede, contudo, que Baco represente o baixo amor a ser vencido pelo amor sublime na viagem iniciática lusíada. Ressentido e vingativo, este representante do baixo amor encarna a baixeza de sentimentos, partilhada por Adamastor, que cumpre aos lusíadas vencer, para merecer a palma.”

(grifos meus)

Como se vê, ali, em Camões e a Viagem Iniciática, o senhor usava o termo regeneração. Baco, o decaído, deveria ser regenerado de sua baixeza pela sublimidade de Vênus.

Tendo embora lido com atenção as vinte e seis páginas do seu ensaio, entendi, no entanto, que essa sua tese não resistia à prova do texto d’ Os Lusíadas. E fui repreendida justamente por discordar, não só de que se desse em Baco esse “baixo amor” a ser regenerado, como também que se desse em Vênus o “amor sublime” regenerador, e citei por prova textual, entre alguns trechos d’ Os Lusíadas, aqueles célebres versos na estância 37 do Canto II, em que a deusa ergue as vestes e mostra o sexo a Júpiter, num puro ato, não de sublimeza amorosa, mas sim de mercancia erótica.

Quanto a ter eu lido o seu livro, nunca o neguei, nem motivo teria para negar o que de mim só diz bem, porque é dever de quem elabora uma tese de Doutoramento conferir o status do seu tema, discorrer sobre até onde chegou a crítica, antes de avançar com sua própria contribuição; e porque, mesmo discordando quanto à tese-mestra de sua leitura, citei detidamente o seu ensaio de 26 páginas em minha tese de quase seiscentas, e mantive tais citações até a segunda edição (ampliada) do meu livro O Canto Molhado, que se publicou em Lisboa em 2008, e depois no Brasil, em 2013, como No Reino da Água o Rei do Vinho. Pena é que tal atitude ético-científica não seja recíproca, e que até nesse seu texto-resposta o senhor continue a ocultar a minha obra.

Por ter lido atentamente o seu ensaio, com o qual dialoguei, pude concluir sua leitura com um comentário em que lhe recomendava:

Finalmente, parece-me que haja, quanto a esta tese, um ajuste a ser feito. Se, como diz o seu autor, o objetivo de Camões, tanto na lírica como no épico, é a reconciliação da própria totalidade humana (apetite e razão), seria uma incongruência pretender esta reconciliação através da regeneração de uma das partes pela outra. Uma pseudo-reconciliação. A verdadeira reconciliação das duas partes opostas de um mesmo todo não se pode obter com a absorção de uma parte pela outra, mas, como viu Jorge de Sena, através de uma conjugação dinâmica, ou seja, uma dialética, a mesma dialética que fez o pioneiro camonista afirmar ter sido Camões um precursor de Hegel.

Em 2005, quatro anos depois de defendida minha tese, o senhor modificou a sua própria, na conferência “Cada Um com seu Contrário num Sujeito”, proferida em colóquio na UFRJ e publicada em 2006, no nº 7 da revista Metamorfoses, da cátedra Jorge de Sena, então regida por Teresa Cerdeira. Transformou ali, aliás, sua leitura d’ Os Lusíadas em diversos tópicos fulcrais, como, por exemplo, já não sustentar que Camões professasse a ortodoxia católica, e admitindo a hipótese do Camões herético e heterodoxo, tal como sustentava minha tese de 2001, e, antes dela, as de alguns outros, como Jorge de Sena e António José Saraiva.

Centremo-nos aqui, porém, apenas no ponto específico que está em pauta: o sentido da presença de Baco n’ Os Lusíadas. Aí se evidencia inequivocamente a alteração da sua leitura, afastando-a de sua tese inicial e inclinando-a (para dizer o mínimo) na direção daquela outra tese, exaltada, porém repreendida pela arguente sua amiga:

“… a um primeiro nível de leitura, Vênus e Baco parecem irreconciliavelmente opostos… Mas também é verdade que no contexto do poema as duas divindades significam muitas outras coisas, o que qualitativamente modifica essas duas significações mais aparentes…. Vênus vai consagrar a imortalidade espiritual dos navegantes na Ilha do Amor. E o que lhes oferece como veículo para esse alto propósito (como bem acentua Fernando Gil) é a celebração dionisíaca da sexualidade humana… Camões está, portanto, mais uma vez, a articular diferentes registos de significação de modo a transformar uma aparente oposição na coexistência de antinomias complementares.”

Já não há, portanto, o triunfo de um sobre outro, e sim uma reciprocidade conciliadora:

“as afinidades entre os propósitos das duas divindades são mais profundas do que as suas diferenças, o que significaria que, em última análise, não há neste poema nem vencidos nem vencedores… Vênus e Baco, a despeito da sua expressa rivalidade na trama do poema, acabam de facto por terem de ser entendidos como divindades complementares na significação totalizante do poema.”

“No plano simbólico do poema teria assim deixado de haver conflito e passado a haver ‘dois contrários num sujeito’, numa reconciliação não só entre pai e filhos mas também entre irmã e irmão, Vênus e Baco, na harmonia universal da Ilha do Amor.”

Introduzia-se na conferência, entre as diversas alterações confluentes para minha tese, até a referência ao mesmo trecho do Canto II em que Vênus seduz Júpiter, por mim citado como argumento de contestação da sua primeira tese:

“E, é claro, não foi uma virginal Vênus que tinha ido ela própria seduzir o ‘soberano padre’, que, zonzo de cio, tudo lhe promete em favor dos seus favorecidos portugueses”.

Claro e explícito nesse segundo momento, mas não naquele primeiro.

Substituiu-se, portanto, aí o sintagma regeneração pelo sintagma reconciliação, num salto semântico implicativo, que exigiria do investigador, no mínimo, informar o leitor sobre a alteração da sua leitura inicial, explicitando-lhe razão e motivo da mudança.

E seria essa a exigência mínima, porque o procedimento ética e cientificamente justo reclamaria a citação da tese que o antecedera, na qual eu não apenas discordara da sua, mas lhe sugerira um necessário reparo, procedido agora, por sobre a ausência de citação da minha tese. Teresa Cerdeira, que tinha em mãos uma cópia da minha tese inédita, quando publicou o seu texto, deveria tê-lo advertido quanto à existência de um estudo no qual eu contestara a sua tese do amor misto, e lhe recomendara submetê-la a um ajuste, tal e qual o senhor afinal procedera. Ao invés disso, sua amiga, não se limitando a publicar sua conferência, ainda me recomendou a leitura da dita cuja, num encontro casual que tivemos, em 2008, e com estas palavras: “compre essa revista e leia o texto de Hélder Macedo; ele voltou ao tema de Baco e Vênus, com novidades”.

Por tais razões, teria eu citado em minha denúncia apenas a Professora Teresa Cerdeira, não fosse o facto de ter eu depois perguntado, por escrito, ao Professor Hélder Macedo se ele lera minha tese, e ele respondido, por escrito, que a lera.

Se a lera, por que não a citava, quando tratava de temas, teses e tópicos nela exaustivamente propostos e demonstrados?

 

2.

Foi providencial que o Senhor Professor colasse, em seu contraditório à minha denúncia, uma bibliografia comparativa. Mas, sendo ela visivelmente lacunar quanto às minhas obras, faz-se mister corrigir-se a falha, para que os leitores possam ter uma cronologia verdadeiramente comparativa dos nossos estudos. Cito por isso uma bibliografia que, embora resumida, já dá ideia do peso da minha contribuição aos estudos camonianos. Oportuno observar que a sua bibliografia, citada em seu contraditório, Professor Hélder Macedo, trata de assuntos mais genéricos, e só recentemente avança na direção de Baco, ao contrário da minha, que desde o início, pelo fio condutor da metáfora da desejada parte Oriental e da contradicção de Baco no discurso d’ Os Lusíadas, centra-se nesses tópicos, debruçada desde o início sobre a observação d’ Os Lusíadas como poema, e estudando-o, não pelo prisma de especulações extratextuais, mas segundo as leis da Poética – tal como preconizava Jorge de Sena. E mais: na ordem inversa dos títulos, dos mais recentes para os mais antigos, observe que o primeiro data de 1992.

 

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Livros

No Reino da Água o Rei do Vinho: Submersão Dionisíaca e Transfiguração Trágico-Lírica d’ Os Lusíadas. Natal: EDUFRN/Academia Norte-riograndense de Letras, 2013.

O Canto Molhado. Metamorfose d’ Os Lusíadas (Leitura do Poema como Poema). Lisboa: Publidisa, 2008.

 

Ensaios em Periódicos e Livros

A Egípcia Linda e Não Pudica: Cleópatra e a Desejada Parte Oriental n’ Os Lusíadas”. In: Colóquio-Letras. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, nº 191, Janeiro/Abril 2016, pp. 137-147.

“Luso-Liso-Lois-Luís: a dissidência lúdico-lingüística subliminar n’ Os Lusíadas. In: Colóquio-Letras. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, nº 188, Janeiro/Abril 2015, pp. 177-184.

“Uma Distração Implicativa: porque o consílio olímpico ofuscou o consílio submarino n’ Os Lusíadas. In: Por S’ Entender Bem a Letra. Homenagem a Stephen Reckert. Lisboa: IN/CM, 2011, pp. 437-452.

No Reino da Água o Rei do Vinho: O Triunfo de Baco n’ Os Lusíadas”. In: Revista Brasileira. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, Ano XVII, nº 68, Julho/Agosto, Setembro 2011, pp. 161-192.

“O Velho que não é do Restelo: Presença Subliminar de Garcia da Orta e o Arquétipo do Velho Sábio n’ Os Lusíadas”. In: Revista Brasileira. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, Ano XVI, nº 63, Abril/Maio/Junho 2010, pp. 199-238.

“Liber Pater: O Louvor de Baco da Antiguidade Greco-Latina ao Renascimento Luso-Italiano”. In: Biblos. Coimbra: Faculdade de Letras/Universidade de Coimbra, N. S. VI, 2008, pp. 119-134.

“Navegante Navegado: Canto da Ninfa-Sereia e Paixão Dionisíaca d’ Os Lusíadas”. In: Românica. Lisboa: Departamento de Literaturas Românicas/Faculdade de Letras/Universidade de Lisboa, nº 17, pp. 229-245.

“A Traça no Pano: Contradicção de Baco n’ Os Lusíadas”. In: Luiz Vaz de Camões Revisitado. Santa Barbara: Center for Portuguese Studies, 2006, pp. 79-115.

“A Traça no Pano: Contradicção de Baco n’ Os Lusíadas”. Tese de Doutoramento elaborada na Universidade Nova de Lisboa, com orientação de Silvina Rodrigues Lopes e defendida na UFRJ em julho de 2001.

“Duas Chaves para Compreender Os Lusíadas. In: Cerrados. Brasilia: UnB, Ano 1 nº 1, 1992,  pp. 24-26.

 

3.

Passemos ao tópico em que o Senhor Professor se refere ao livro escrito em colaboração com Fernando Gil.

“Em 1998, no livro que escrevemos em colaboração, Viagens do Olhar, Fernando Gil propõe uma instigante e inovadora interpretação de Baco n’Os Lusíadas (Capítulo I, pp 13–69), onde analisa aquilo que designa como “o malogro dos Lusíadas e, nesse contexto, o que caracteriza como “a resistência de Baco” à possibilidade de Camões o resolver enquanto personagem. E, de facto, Baco é o grande problema que fica por resolver no poema.”

Foi providencial também que o senhor trouxesse à pauta essa coletânea de ensaios. E também aqui é preciso que se esclareçam os factos.

“O Efeito-Lusíada”, por mim lido no opúsculo publicado em 1999, quando já eu tinha pronta a minha tese, e em fase de revisão, ocupa-se de Baco, num breve item, intitulado “O Malogro d’ Os Lusíadas: A Resistência de Baco”, que vai da página 51 ao início da página 57, numeração idêntica à que consta no livro Viagens do Olhar, publicado em 1998, e não essa que o senhor informa – 13 a 69 (totalidade do ensaio, mas não do item sobre Baco). Mas obviamente em meia dúzia de páginas nem o próprio Baco lograria cumprir o que cumprira eu em seiscentas. Trata-se de uma abordagem brevíssima, que não se propõe cumprir a análise da trama semântica da contradicção dionisíaca no poema, e que ademais, no meu entender, engana-se quando afirma que Baco se impôs ao poema contrariando Camões, e que, portanto, Baco seria o problema d’ Os Lusíadas; afirmação essa com a qual o senhor diz estar de acordo, discordando da tese apenas num aspecto:

“No entanto, da minha diferente embora, nalguns aspectos, convergente perspectiva de leitura, só teria havido malogro n’Os Lusíadas se Baco não tivesse resistido, se não fosse uma personagem deixada por resolver.”

“Como eu o entendo, o Baco d’Os Lusíadas corresponde às incertezas de Camões sobre o futuro de Portugal. A decadência de Baco — a potente divindade fundadora transformada num corrupto, enfraquecido e malevolente manipulador de enganos — é um aviso para os contemporâneos portugueses de Camões.”

Respeito o seu direito a pensar e propor, Professor, mas lhe pergunto por qual procedimento chegou a essa conclusão. E lhe adianto que à minha própria cheguei eu mediante exaustiva e meticulosa análise da trama semântica do poema, urdida numa cadeia combinatória de núcleos semânticos. Não a tirei do nada, nem da minha imaginação, nem muito menos de uma fantasia extratextual. Cingi-me sempre ao texto, e foi esse o meu diferencial.

Mas considero providencial ter o senhor retornado a esse texto porque essa remissão dá-me a oportunidade para uma segunda vez chamar-lhe a atenção quanto a um tópico d’ Os Lusíadas.

Permito-me aqui chamar-lhe a atenção para o facto de que, se reler Os Lusíadas com atenção à sua enunciação, e não apenas ao seu enunciado, e se lhe observar – como fiz eu, meticulosamente – a trama semântica, verá que Baco é um aviso, sim, aos portugueses – coisa que venho dizendo há anos, e que o senhor não nos informa a partir de quando começou a dizer – mas não um aviso para que se afastem de sua fraca malevolência enganadora e manipuladora de enganos. Permita-me, data vênia, Senhor Professor, sugerir-lhe que o Senhor está aqui ainda equivocado.

Se o senhor se der também ao trabalho de ler atentamente, como eu li, os monumentais Comentários de Faria e Sousa a Os Lusíadas, verá que já ele intuía, farejava intuitivamente, o que demonstrei claramente ao expor certos trechos semanticamente críticos d’ Os Lusíadas, como aquele que encerra o Canto VII e abre o Canto VIII, em que o aviso dado pelo poeta, na voz de Paulo da Gama, quando apresenta ao Catual a figura de Luso, o filho de Baco e patriarca mítico dos Lusíadas e da Lusitânia, em tudo difere desse que o Senhor Professor propõe. Confiram os leitores esse trecho de abertura do Canto VIII:

– «Estas figuras todas que aparecem,
Bravos em vista e feros nos aspeitos,
Mais bravos e mais feros se conhecem,
Pela fama, nas obras e nos feitos.
Antigos são, mas inda resplandecem
Co nome, entre os engenhos mais perfeitos.
Este que vês, é Luso, donde a Fama
O nosso Reino «Lusitânia» chama.


«Foi filho e companheiro do Tebano
Que tão diversas partes conquistou;
Parece vindo ter ao ninho Hispano
Seguindo as armas, que contino usou.
Do Douro, Guadiana o campo ufano,
Já dito Elísio, tanto o contentou
Que ali quis dar aos já cansados ossos
Eterna sepultura, e nome aos nossos.


«O ramo que lhe vês, pera divisa,
O verde tirso foi, de Baco usado;
O qual à nossa idade amostra e avisa
Que foi seu companheiro e filho amado.

Aqui, em sua função icônica e emblemática, Baco nada tem de malévolo e sim de venerável; e mesmo quando investido na função de personagem mítica (irado Baco, Lieu irado), sua ira nõ porta baixeza, mas sim uma justa indignação.

Contudo, é pertinente perguntar-lhe, Professor: se, malgrado o que diz o texto em seu enunciado, Baco, na sua opinião, é esse ser malévolo de quem os portugueses devem afastar-se, então não seria uma contradição o Senhor apresentá-lo agora aos portugueses como pai de Portugal? Estaria o Senhor recomendando o parricídio aos portugueses? Seria conveniente esclarecer mais esse tópico.

Minha investigação, concluída na tese que se defendeu em julho de 2001, demonstrou, pela análise sistemática da trama semântica textual, que Camões pôs o deus da hera deliberada e propositadamente n’ Os Lusíadas, como solista do coro contradictório, porta-voz da dissidência do poeta partilhada com os seus correligionários e portador da sua pulsão raivosa, da sua ira, da sua justíssima indignação, e da sua vingança muito bem urdida e cumprida, enviando ao monarca de infeliz memória (D. João III) um presente de grego, em forma de poema-caravela, com o estandarte de barões assinalados, mas com uma hoste de ninfas ocultas no porão. Tal como perceberam Jorge de Sena, António José Saraiva e Eduardo Lourenço, entre alguns; e tal como já de muito antes sugerira Faria e Sousa, no formidável aviso metafórico:

“Porque como a boa doutrina seca e desnuda é mal recebida pelos humanos, convém, para ser admitida, disfarçá-la com coisas parecidas às deles… Uma doutrina sólida, porém amarga ao paladar humano, não se deve transmitir descoberta, é preciso açucará-la com belas indústrias… E ordinariamente às crianças, para levá-las à doutrina que lhes queremos ensinar, a envolvemos em carícias e regalos… E como os grandes homens não escrevem senão para ensinar, e o ensino é difícil de admitir, banham-no com doçuras, para que acudindo a ele alguns venham a cair nele.”

Aviso que inversamente se confirma no trecho da carta que Camões escreveu de Ceuta:

“Grande trabalho é querer fazer alegre rosto quando o coração está triste; pano é que não toma nunca bem esta tinta…. Ainda que, para viver no mundo, me debruo de outro pano, por não parecer coruja entre pardais, fazendo-me um para ser outro, sendo outro para ser um; mas a dor dissimulada dará seu fruto; que a tristeza no coração é como a traça no pano.”

Pois, assim como o remédio amargo se adocicou em louvor aos ouvidos desatentos, a dor trágico-lírica, dissimulada em canto épico, estriou o discurso d’ Os Lusíadas numa contradicção da sua dicção, e o texto longamente lambido acabou por enfim destilar o seu salutar veneno, o veneno coberto, o engano fabricado, pelos quais o enunciado trai sua enunciação.

Insisto: no discurso poético, é preciso observar, para além do enunciado, a enunciação.

E para demonstrar que tem fundamento textual minha discordância da tese de Fernando Gil, segundo a qual Baco se teria imposto ao poema contra a vontade do poeta, e seria assim “o problema d’ Os Lusíadas”, transcrevo aqui um trecho das Oitavas de Camões a D. Constantino de Bragança, Vice-Rei da Índia, já citado e comentado em minha tese, como prova inequívoca e irrefutável de que Baco foi deliberada e propositalmente posto por Camões n’ Os Lusíadas, como emissário icônico de um duplo conteúdo: a pulsão trágico-lírica do poeta e a dissidência por ele partilhada com alguns dos seus contemporâneos:

 

Rómulo, Baco e outros que alcançaram

Nomes de semi-deuses soberanos,

Enquanto pelo mundo exercitaram

Altos feitos e quase mais que humanos,

Com justíssima causa se queixaram

Que não lhe responderam os mundanos

Favores do rumor, justos e iguais,

A seus merecimentos imortais.

 

4.

Consideremos agora o momento final de sua cronologia, que se refere ao recente lançamento de um seu livro de ensaios, acompanhado de conferência que aborda o tema de um dos ensaios do livro – o qual, coincidentemente, toca o assunto hoje sempre mais cobiçado por muitos bicos: o sentido da presença de Baco n’ Os Lusíadas.

Diz o Senhor Professor:

“E este foi um dos principais temas que desenvolvi no capítulo “Luso, filho de Baco” no meu novo livro de ensaios, bem como, em versão ligeiramente mais curta, na conferência “Portugal, filho de Baco”. Partindo portanto, mesmo quando em discordância, da inovadora leitura de Fernando Gil, que me fez repensar (julgo que amplificar e melhorar) alguns aspectos do que eu havia escrito sobre o conflito entre Baco e os seus “descendentes” (bem como entre Baco e Vénus) em estudos anteriores.”

Aqui o Professor Hélder Macedo admite publicamente que começa a alterar (“amplificar e melhorar”, diz o Senhor Professor) a sua leitura d’ Os Lusíadas. Mas ainda sem explicitar que de facto modifica decisivamente a sua leitura, e sem ainda fazer referência a quem, muito antes dele, não se limitara a “melhorar e aperfeiçoar” especulações ligeiras sugeridas, mas não demonstradas, e sim cumprira a árdua tarefa, reclamada há setenta anos por Jorge de Sena, de proceder à análise rítmico-semântica d’ Os Lusíadas, na trama evidenciando que Baco, ao invés de problema, é a peça-chave para a compreensão mais avançada e aprofundada do poema.

E a reincidência nesse comportamento denota uma insistência na tentativa de ocultar as minhas teses, como se evidenciou em ter o Senhor Professor lançado, no El Corte Inglés, o seu novo livro de ensaios, em que se destaca o tema de Baco; e proferido, no mesmo evento, sua recente conferência, cujo tema, como diz ele em seu contraditório, é um resumo do capítulo do livro que trata de Baco n’ Os Lusíadas; mas sem ainda citar o meu estudo, nem mesmo tendo eu interpelado previamente o conferencista no espaço de comentários da página virtual que anunciava a conferência – que, aliás, sediava-se também no Face Book, sem com isso causar estranhamento ao Senhor Professor.

Reincide também quando, em seu contraditório que não responde aos termos de minha Carta Aberta aos Leitores de Camões, procede a um desfalque em minha bibliografia, por si apresentada numa clara (porém inverídica) desvantagem em relação à sua.
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5.

Passemos à conclusão, procedendo a alguns ajustes.

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Em nenhum momento de minha Carta Aberta usei a palavra plágio, porque o que os factos dizem é algo mais complexo, mais sutil e de gravidade maior. Não sei se estou correta, mas me parece que plagiar alguém é simplesmente copiar o que esse alguém diz e assinar embaixo, como se seu fosse. Tal atitude é pouco inteligente e facilmente denunciável. Outra coisa é ler as teses de alguém e, compreendendo o relevante valor e alcance de sua significância, modificar as próprias teses, inclinando-as sutilmente em direção às do outro autor, mas sem referir que suas próprias teses sofreram alteração, e muito menos citar que tal mudança sucedeu após a leitura de tal ou qual autor. Proceder desse modo, no meu entender, é algo mais grave que simplesmente plagiar, porque implica a distorção do jogo científico, que consiste em informar sempre os seus pares, bem como o leitor leigo no assunto, sobre a evolução do processo na crítica do assunto em questão – como fiz eu meticulosamente, ao longo de um capítulo de cem páginas, introdutório à minha tese.

Analogamente, dois procedimentos distintos devem ser clarificados perante os leitores de Camões: um, que é referir-se ligeiramente a Baco, numa mera sugestão contida num texto que se desdobra por outras diversas especulações; outro, que é pinçar a figura de Baco e destacá-la como tema principal de um ensaio ou conferência, ainda mais quando o tema se destaca num certo momento político-cultural-contextual. Os dois procedimentos o Senhor Professor adotou em dois momentos distintos de de um arco temporal.
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Aqui um trecho de sua resposta pública:

“Não participo em facebooks nem eles me parecem ser o veículo adequado para uma adequada troca de ideias. E se, como me dizem, não era de ideias que ali se tratava mas de insultos caluniosos, também não sou pugilista, nem psiquiatra, nem agente policial. Mas sou um professor de literatura que sempre deu o devido crédito às ideias de quem as tenha tido.”

Posso entender que o espaço da WEB não lhe sirva ao gosto, visto que é um espaço transparente, independente e democrático, e como tal por vezes incômodo. O que, no entanto, não poderia aceitar seria a afirmação contida no segundo período frasal desse parágrafo, por ser ela inverídica, uma vez que não o caluniei; como inverídica é também a frase final, o que se demonstrou nesta minha resposta.

Quanto ao que lhe dizem, continuam a informá-lo mal, muito mal. Continua a mentir-lhe, e com franca desonestidade, quem lhe diz que ali não se tratava de ideias. Esse ponto só merece o meu desprezo, nunca minha atenção.

Mas ninguém lhe pede que seja pugilista, nem psiquiatra, nem agente policial. O que se pede é unicamente isto: que se atenha aos factos; que, cumprindo a ética científica, permaneça respeitosamente fiel aos factos; porque contra os factos não cabem insinuações desviantes e capciosas.

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Quanto ao relato que o senhor faz da conversa que tivemos, direi apenas que o senhor se confunde, não apenas quanto às datas, mas também – sobretudo e redondamente – quanto ao que lhe teria eu dito e o senhor me respondido naquela ocasião:

“A recém-doutorada mostrou, já então, alguma inquietação, presumindo que a minha interpretação estaria a evoluir no sentido do que ela considerava ser uma interpretação sua totalmente original. A qual a levara a uma tentativa de identificação biográfica de Camões com a sua personagem Baco n’Os Lusíadas, que aliás achei interessante, mas que considero incompatível com as complexidades do texto. Se bem me recordo, tentei sossegá-la, encorajando-a a desenvolver o seu pensamento com maior rigor do que havia feito, sem prejuízo do pensamento dos outros. E, portanto, também do meu.”

O senhor muito mal se recorda, Professor Hélder Macedo. Falece-lhe por completo a memória daquela circunstância, a começar pelo facto de que àquela altura eu já não era recém-doutor; e isso é de fácil comprovação, pois, como a conversa se fez mediante mensagem eletrônica, tenho-a ainda disponível no meu dossiê-Camões, e lhe asseguro que os seus termos estão nos antípodas dessa sua fantasiosa reinvenção.

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Alguns dos seus sequazes, que não me conhecem e estão desinformados quanto ao tema em pauta – presença e função de Baco n’ Os Lusíadas – investiram contra mim com virulência que aos meus olhos experimentados pareceu menos insultuosa que simplesmente pueril.

Então não estou sempre lembrada do aviso dado por Jorge de Sena, sobre o risco que correm todos aqueles que se aventuram a adentrar o feudo camonista? Salva-me serenamente o respaldo de um estudo que se ateve ao texto do poema Os Lusíadas, com enunciado e enunciação.

Ademais, pra que voltar o meu olhar experimentado em direção aos brados ignorantes, quando mais vale mantê-los fixos em palavras de um sábio e insigne escritor e filósofo português que se eleva sobre todos os leitores de Camões?

“Talvez não seja um acaso se devemos a uma estudiosa brasileira de Camões, Luiza Nóbrega, uma das mais originais leituras do texto camoniano como texto de mitemas lidos em chave junguiana. A sua exegese pode suscitar estranheza ou perplexidade para quem está mais habituado a uma leitura classicamente culturalista. Navega atrevidamente e com audaciosa sintonia nas águas mitológicas de que Os Lusíadas são entre nós espelho insuperável e não ainda superado. O seu texto é, ao mesmo tempo, glosa literal e transcendente dos mitos que funcionam no poema.”

Eduardo Lourenço, Revista LER, setembro 2011.
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Devemos ser gratos ao destino, quando permite chegarem os nossos estudos às mãos de quem os pode compreender e reconhecer, publicamente.

Quanto aos demais, cada um pensa e decide conforme seu próprio juízo.

Ninharias… Ossos do ofício…

E nô mais, Musa, nô mais.

 

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Luiza Nóbrega

Natal, 23.02.2017

 

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[Confira aqui a Carta Aberta inicial e a íntegra da resposta do professor Hélder Macedo]

 

 

 

 

 

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Luiza Nóbrega é escritora (poeta, ficcionista e ensaísta) e pintora, professora de Artes e Literatura recém-aposentada pela UFRN. Graduada em Direito com medalha do Mérito Universitário. Estudou Artes Plásticas no CPA (Rio de Janeiro), com Ivan Serpa, praticou com Nise da Silveira em seus grupos de estudos e foi discípula de Rolf Gelevski. Mestre em Literatura Brasileira na UnB, Doutora em Letras Vernáculas-Literatura Portuguesa na UFRJ e Universidade Nova de Lisboa e com dois posdocs (o primeiro, sobre Os Lusíadas, nas Universidades de Évora e Nova de Lisboa; o segundo, sobre Lêdo Ivo, na Università degli Studi di Perugia). Especializada na leitura dos discursos poéticos, dedicando-se especificamente a Camões e Lêdo Ivo. Membro de três Centros de investigação: dois em Portugal (Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra e Instituto de Estudos Portugueses, da Universidade Nova de Lisboa) e um na Itália (Centro di Studi Comparati Italo-Luso-Brasiliani/Universidade de Perugia). Em novembro de 2015 coordenou o evento internacional POESIA SEM FRONTEIRAS: PAUTA E CENA COM LÊDO IVO, realizado na UFRN. E-mail: luiza14@gmail.com




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