A arquitetura das úlceras
…………………………….“Davi e Abisag”, de Pedro Américo
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Pensei em começar essa coluna de um modo suficientemente alegre. Pois alguns amigos dizem que estou ficando ranzinza. Que antes meus comentários irritados a algumas coisas inacreditáveis que acontecem a nosso redor faziam algumas delas quase valerem a pena. Meio seu Lunga. Mas é muito difícil conter as úlceras. Pois é o mundo que as vai arquitetando para dentro de nós. Agora mesmo, acossado por um calor infernal, tenho de música incidental os latidos de um cão do vizinho (que vão de manhã até a noite e que os donos não investigam ou lhe assobiam gentilmente que evite) – cão cujo nome não sei, mas a quem chamo carinhosamente de “Cérbero”. Já pensei em comprar um berrante para de vez em quando, nos momentos de maior angústia e treva, abrir a janela, tocar por uns vinte segundos e depois entrar de novo, deixando um rastro de silêncio do lado de fora. Mas isso seria absurdo demais. Já viram quanto custa um berrante? Enfim, aqui, em um nível profundo de calor infernal, ainda tenho que aguentar alguém em um chuveiro do prédio ao lado cantando aquela música medíocre daquele mais recente cantor medíocre que anda por aí fazendo um sucesso estuprador (cujo nome vocês sabem, mas que não vou mencionar, pois espero que este texto tenha vida mais longa que ele). O que dói é que a sabedoria tem limites: sempre chega o dia em que se percebe que não há mais muito tempo e que não se conseguiu conhecer um décimo do que se programou – e que mesmo o que se conheceu não nos dá garantia de nada. No entanto, a ignorância não tem limites. E não há nada que esteja ruim que não possa ficar um pouquinho pior. Pode parecer até pessimismo. Mas não é. Antes fosse. O pessimismo é sempre engraçado. Nós que lidamos com arte e com o que o conhecimento dela pode proporcionar às pessoas, costumamos apostar nossas fichas nela. Mas agora a coisa está parecendo perder a graça, pois toda a arte também está se resumindo ao circo… E os palhaços estão cada vez mais pavorosos, cada vez mais unidos e aparelhados, com suas flores que espirram água eletrônica. Cada vez mais zumbis. A gente grita, grita, mas as mãos vão surgindo da terra e nos tragando para baixo. Um filme de terror vai tomando conta das ruas… Será que estou exagerando? Então, vejamos…
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…………..Cenário de terror 1 – o museu:
Pois bem, há uns dias estava eu já na metade das obras do Museu Nacional de Belas Artes, compenetrado, quando comecei a sentir se aproximar aos poucos, de quadro em quadro, suas risadas aumentando a cada um deles, um jovem casal. Cheios os dois de enlevação perante tanta arte, eu preferi acreditar. Quando já estavam bem perto, olhei para o lado e em cinco segundos percebi como era a dinâmica deles: a cada quadro eles paravam e analisavam se valia a pena. Quando valia, ela se colocava em frente, jogava os cabelos para um lado, um leve tranco no pescoço e pronto, ele tirava a foto. E depois passavam ao próximo. Era isso. Até que chegaram ao quadro à minha frente, “Davi e Abisag”, de Pedro Américo. Esse com certeza valeria a pena, pelas gargalhadas que eles deram. “Olha que cara de assustado desse cara do quadro!”, disse ela. E ele, diante da belíssima nudez de Abisag, em um tom que parecia acreditar muito excitante: “Sabe por que ele tá assustado? Deve tá pensando ‘será que eu dou conta?’”. E, para arrematar, preparou a foto para postar no Facebook (eu o ouvi lendo a legenda às gargalhadas para a namorada): “meio gordinha, mas gostosa… chupa essa manga, tiozinho…”.
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…………Cenário de terror 2 – celebridades:
Um conhecido meu, com quem sobre artes plásticas conversei por uma única vez, me telefonou outro dia, quase à meia-noite, aos gritos. Pausa para descrever: esse era um cara que dizia fazer questão de sempre se esforçar ao máximo para “consumir cultura”. Louvável. Um dia me disse que lia muito. Sessenta livros por ano. Ebooks no celular. Tudo bem, não tenho preconceitos contra nenhum suporte: perguntei o que lia. Ele me mostrou e, sinceramente, era um amálgama que me embrulhou o estômago. Então fiz uma listinha do mal para ele. Ainda perguntei algumas vezes sobre a lista. Não leu nada dela. Mas voltando à ligação. A situação era a seguinte: ele estava participando de um congresso de economia, no qual havia conhecido uma mulher que queria impressionar. Naquele momento, estava com ela em um restaurante. Durante o congresso, alguém havia mencionado, ele não sabia por que (e eu também não faço ideia), “uma tal de Camille Claudel”. A mulher se disse fã dela. Ele também. Ela perguntou o que mais gostava da artista. Ele pediu licença para ir ao banheiro. E de lá me ligou: “Você tem um minuto para me dizer quem é essa porra de Camille Claudel!”. Eu pedi calma e falei o pouco que eu sabia sobre ela. E quanto mais ele consumia cultura, mais ficava irritado. Até que comentei que Claudel era amante de Rodin. Nesse ponto ele perdeu totalmente a paciência: “Amante! Logo vi! Logo vi que só podia ser mesmo uma vagabunda!”.
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……….Cenário de terror 3 – celebridades 2:
Outro dia, tive a ideia de uma performance. Se chamaria “Anita Malfatti e José Wilker, seu homem amarelo”, brincando com a semelhança que percebo entre o ator e a figura do quadro de Malfatti desde que o vi pela primeira em um livro didático, ainda na escola. Conversando com uma amiga performer, que havia, vejam bem, estudado artes plásticas, ela me aconselhou: “Mas, olha, cuidado, que às vezes essas coisas dão até processo, hein!”. Eu disse: “Ah, mas duvido que o José Wilker fique sabendo de minha mísera performance.” E ela arrematou: “Ele, não, que os atores são até bem tranquilos. Mas e a pintora?”
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………..Cenário de terror 4 – adendos:
Recentemente, em um dos encontros de um curso que eu ministrava em uma faculdade, surgiu o assunto: adaptação de livros para filmes. Alguém pediu a palavra para fazer um comentário, até bem interessante, sobre o romance “O exorcista”. No meio de sua fala, uma voz surgiu de um canto da sala, cheia de descrédito e sarcasmo, e questionou: “‘O exorcista’, um romance? Romance entre quem? O padre e o capeta?”.
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……….Cenário de terror 3 – burocracia:
Há um tempo fui registrar no Escritório de Direitos Autorais uma adaptação livre que escrevi da Fedra de Racine. Antes de ir lá, me informei pelo telefone sobre de que forma eu deveria mencionar o nome de Racine na ficha (não havia na época espaço para adaptações… me disseram que hoje há). Um funcionário me indicou para ele o campo de coautor. Achei estranho. Uma honra, mas estranho. E argumentei: “Vai dar merda”. Ele me garantiu que não. Após uns dias, recebi uma carta deles dizendo que faltavam esclarecimentos sobre o coautor. Me pediram que enviasse xerox da identidade e do CPF de Jean Racine.
Enfim, amigos, desculpem, mas chega! Pausa para respirar, pois senão o coração não aguenta! Tenho que admitir que minha veia tragicômica anda mesmo muito congestionada nesses últimos tempos. Mas juro que estou me esforçando. Não há mais nada a fazer senão continuar nossos esforços. E rir, enfim. Fecho aqui para seguir agora para minha sessão de yoga, que vai me fazer bem. Isto é, se o ar do metrô estiver funcionando, se não tiver alguém ouvindo música alta sem fone de ouvido etc etc. No fim de tudo, o que mata são as etcs. Ai, Dioniso nos valha!
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Victor Paes é escritor, ator e editor da Confraria do Vento. Publicou os livros de contos Deus ex machina (Confraria do Vento, 2011) e Mas para todos os efeitos nada disso aconteceu (Dulcineia Catadora, 2010), além do livro de poesia O óbvio dos sábios (Confraria do Vento, 2007). Tem publicados seus contos e poemas em diversas revistas e sites. Participou das coletâneas 24 letras por segundo (Não Editora, 2011), organizada por Rodrigo Rosp, e XXI poetas de hoje em dia(nte)(Letras Contemporâneas, 2010), organizada por Priscila Lopes e Aline Gallina. Publica o blog www.victorpaes.blogspot.com E-mail: victorpaes@confrariadovento.com
29 fevereiro, 2012 as 13:19
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