Kafkiano: aquilo que em algum momento vai definir os atos extremos do Estado como guardião-meganha da igualdade jurídica liberal ou do Estado utópico do igualitarismo social socialista, convertidos ambos em totalitarismo; aquilo designa também os excessos da racionalidade impessoal nas funções, cargos e procedimentos que efetivam a lógica da produtividade moderna; o absurdo que subjaz às relações de poder; o afeto que se deteriora a partir da obediência estrita a esse poder mesmo, paterno/patronal; a vida como um pesadelo circular.
A recepção contemporânea ou politicamente correta lê o teatro do mundo do ponto de vista de um bom-mocismo de centro-esquerda, por essa razão alguns estudiosos defendem o pessimismo irônico ou as doses pesadas de niilina contidas no pensamento-arte de Kafka como insumos a um texto que exige ou inventa um leitor subversivo, moralista, insubmisso, revoltado consigo mesmo, contra a sociedade e a ordem, etc. Na verdade há uma confusão entre o que obra de Kafka nos sugere e uma leitura possível que talvez a colocasse numa perspectiva pró-ativa e de ruptura com os modelos que o escritor, supostamente, estaria em confronto. Esse tipo de leitura reivindica, no final das contas, uma utilidade para a literatura; a utilidade da arte.
Mas Kafka mimetiza a lógica do sonho; do pesadelo (Orson Welles, The Trial, 1962). As transições rápidas e aparentemente arbitrárias, as conexões que jamais se fazem evidentes, a circularidade e o retorno dos mesmos elementos sempre transfigurados, enfim, situações e transes que nos deslocam para as características do sonho-pesadelo recorrente.
Borges menciona um livro de psicologia onde o autor descreve o sonho como o mais baixo plano da atividade mental e justifica isso pelas incoerências e pela falta de nexo das fabulações dos sonhos. Mas são justamente esses traços, aparentemente depreciativos, desse exercício ansioso e ocioso de imaginação que o aproximam da atividade artística, aliás, a arte não pode prescindir desses traços, do contrário não será arte.
Os sonhos não podem ser examinados diretamente. Eles retornam precariamente por meio da memória, por meio do relato. Sonhos rememorados textual ou oralmente são traduções, recriações. E, como traduções, podemos piorar ou melhorar os sonhos. O sonho, segundo Borges, é uma obra de ficção, assim, continuamos fabulando a partir do momento em que despertamos e, depois, ao relatar ou fixar esse sonho em texto.
A partir da conclusão do ficcionista argentino pode-se dizer que a obra de Kafka é uma reunião de sonhos: o pesadelo resolvido em uma tensão fílmica interior. Ou, ainda, uma enciclopédia de traduções literárias de sonhos.
Ronald Augusto é poeta, músico, e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004) e No Assoalho Duro (2007). Despacha no blog www.poesia-pau.blogspot.com e é diretor-associado do website www.sibila.com.br
Jeferson é carioca radicado em Porto Alegre. Atualmente é doutorando em teoria literária na PUCRS. Estreou na literatura com o romance O beijo na parede (2013), eleito o livro do ano pela Associação Gaúcha de Escritores. Teve textos adaptados para o teatro e contos traduzidos para o inglês e o espanhol. É autor […]
Paulo Petronilio é formado em Letras e Filosofia. Mestre em Literatura brasileira (UFSC). Mestre em Educação (UFSC). Doutor pela UFRGS. Pesquisa escritas pretas, diáspora e decolonialidade. Transita entre Literatura e Filosofia. Autor do livro “Performances na encruzilhada”, resultado da sua Tese de Doutoramento defendida em 2009. É autor de “Pedagogia Trágica: um pensar humano demasiado […]
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22 fevereiro, 2012 as 21:44