Na soleira da escrita


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GLAUCIA OLINGER | Orelhas do livro A vida inesperada, de Floriano Martins
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Em tempos de produções poéticas minguadas e aguadas, em um mundo estéril e desolado, a poesia surrealista de Floriano Martins – espantoso artefato – surge como um Abre-SE, Sésamo, das celas de seguranças dos manicômios.

Octavio Paz disse que o surrealismo é a maçã de fogo na árvore da sintaxe. Não posso dizer que a poesia de Floriano – cheia de interferências, cruzamentos, palavras saltitantes, dançantes e em rodopio – seja como uma Eva Dormente, uma Eva antes de ter mordido a maçã, Eva antes da contaminação.

Não. Não posso. Mas consigo enxergar uma situação em que o mundo foi pelos ares e Floriano Martins está e assim permanecerá devotado ao infinito, juntando os cacos para reconstruir um ideal de clareza pós-apocalíptica.

Sua imaginação é uma avalanche e nada é linear, nada tem começo, meio e fim, certamente porque tudo ali é começo, meio e fim. Avalanche guardiã do próprio mito que imagina, alinhava, faz reverberar e reitera. Escrita em estado permanente de desconstrução e reinvenção, difícil saber como o poeta evita cair no próprio abismo.

Cada frase é como se algo muito sério fosse acontecer. É preciso ler e reler e ler uma vez mais, até que se tenha a certeza de que as palavras não fazem sentido algum, justamente porque fazem todo o sentido do mundo. Intrigantes jogos de linguagem, uns divertidos, outros sombrios, graças a eles Floriano chega à lógica do sentido através do não-sentido.

Outra impressão marcante é que seu leitor, muito mais do que simplesmente leitor, é um voyeur: arrazoados intensamente eróticos, sensíveis ao tato, o atordoam e perturbam, e o poeta sabe como poucos tirar proveito dessa vertigem encantatória, porque habilmente domina – ou se deixa enganosamente dominar por ele – o instante preciso em que se deve produzir ruído e alvoroço.

Uma vez fechado o livro, o ruído permanece, como expressão repleta de contágio e possibilidades. Esta é a mágica de uma vida inesperada. Se a linguagem mascara ou revela sombras, jamais o saberemos.

No entanto, a grande tragédia é que a poesia, alimentada pelo tédio, pela angústia e o desespero, como íntima nostalgia do Paraíso, pode revelar um Floriano Martins que deseja algo mais do que simples passagem. Quer o diálogo. Sua escrita compartilhada com seus pares poetas, por exemplo, toma forma e reforça a linguagem da consciência com a da associação, criando uma intensa rede.

Nele não observo catarse ou êxtase, mas sim emoções recortadas com tranquilidade. Absoluto controle. No fundo da imaginação existe um poder que abarca moralidade, beleza e verdade. Floriano Martins nos proporciona não apenas a visão da grandeza pessoal do poeta que é, mas de algo impessoal e ainda muito maior: a visão de um ato decisivo de liberdade espiritual: a visão da recriação do homem através da poesia.

 

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GÊNESE POR TRÁS DOS ESPELHOS | Márcio Simões entrevista Floriano Martins
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MS | Você vem trabalhando num volume, intitulado A Vida Inesperada, em que reúne – ou talvez mais apropriado seria dizer refunde – a totalidade de seus escritos poéticos. O que representa esse volume para você?

FM | Em 1991 eu escrevi, e de imediato publiquei, dois livros que mostraram uma feliz definição de minha voz poética: Cinzas do sol e Sábias areias. Ambos são distintos na forma – o primeiro é um conjunto de prosa poética; o segundo enfeixa uma série de décimas –, porém se irmanam na presença de um tema único, na caracterização de personagens inseridos em uma tessitura narrativa e na evocação de um epos pessoal. Um pouco antes deles eu havia escrito dois outros: A queda da rebeldia angelical e Contradições terríveis. Dos originais do primeiro eu me desfiz, porém o segundo foi publicado em 1989. Neles havia uma tensão entre fundo e forma que não se definia favoravelmente à identificação de uma singularidade buscada por mim. De algum modo era a mesma a paixão pela diversidade de ambientes, a provocação filosófica, o choque intencional de imagens, a trama narrativa, porém eu não me sentia tão em casa quanto a partir do momento em que escrevo Cinzas do sol. Antes deles foram publicados cinco outros livros. São livros-degraus. Eu nunca estive muito longe de mim, mas vinha até então desatento a um detalhe: o de tornar-me personagem de minha criação. Faço tais observações por conta de tua referência a que o livro A vida inesperada refere-se à totalidade de meus escritos poéticos. Não há isto, é bem outro seu espírito. Cronologicamente eu pus em um mesmo caldeirão uma série de experimentos poéticos que somam 24 anos (1991-2015), mas que não resumem sequer a totalidade do que criei neste período. O primeiro impulso não era o de reunir escritos, menos ainda o de revisá-los ou corrigi-los. Profusão e diversidade me fizeram parir um pouco de tudo ao longo destes anos. Flertei com várias máscaras da escrita. Da tragédia ao pastiche. Do versículo bíblico à psicografia. Do soneto à crônica criminal. Não à toa um de meus livros se chama Alma em chamas. A ideia, no presente caso, era a de ajustar os ponteiros existenciais da criação, espalhando em uma mesa imaginária tudo o que publiquei, desde Cinzas do sol (1991) até O sol e as sombras (2014), sem deixar de fora também muitos inéditos. Tratei de apontar a mim mesmo algumas coordenadas ainda não percebidas. Por vezes corrigi um advérbio, uma imagem, um argumento. Desloquei poemas de um livro para outro. Cortei versos e mesmo inúmeros poemas. Fundi uns poucos. Ao longo desses 24 anos e entranhado no enredo dos 26 capítulos que constituem A vida inesperada, observo agora com melhor clareza a presença de um personagem inteiramente alheio à tradição lírica brasileira. Eu me sinto – e não vejo reconforto nisto – um estranho no ninho de nossa lírica.

MS | Em que exatamente consistiria essa estranheza? Parece evidente no seu caso que o empenho de todo artista no sentido de forjar uma singularidade e uma perspectiva crítica pessoal, sem a qual nenhuma arte se torna relevante, levaram a um elevado grau de autoconsciência daquilo que se faz. Sendo assim, quais acredita serem os pontos de atrito e contato (bem como as contribuições específicas) da sua escritura poética em relação à tradição lírica nacional?

FM | Eu não sei se o correto seria chamar de pontos de atrito. Observo bem amiúde inclinações por um conformismo estético, que acabam por expressar tanto uma transigência com a tradição quanto uma ausência de motivos. Quanto a pontos de contato, há inúmeros, porém não com a totalidade de nenhuma obra em especial. Ao ler um poema de outro aprendemos tanto com seus erros quanto com seus acertos. E ninguém erra ou acerta por completo. Três imensos poetas brasileiros erraram por excesso: Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Manuel de Barros. Porém toda grande poesia arrasta consigo um ninho de pequenos pecados. Não sei se eu poderia referir-me, em meu caso, a contribuições específicas. Os poetas se leem muito pouco entre si e menos ainda o fazem com o necessário sentido de entrega. Outro dia escrevemos um poema a quatro mãos, Contador Borges e eu. Ao final ele observou que o poema estava tão bem soldado que era impossível identificar a autoria de versos isolados. No entanto, somos tão distintos um do outro. Tenho por poetas como Marco Lucchesi, Viviane de Santana Paulo e o próprio Contador Borges uma admiração incondicional. Mas somos vozes que foram se formando graças a um conjunto de experiências de vida e não apenas fruto de nossas leituras. Este desequilíbrio entre vida e obra constitui um dos defeitos mais graves de nossa lírica.

MS | Para Sergio Cohn, destacando justamente a singularidade da sua poética no panorama nacional, sua poesia “realiza textos com forte teor imagético e algumas vezes delirantes, em longos fluxos de versos livres, ao gosto da poesia surrealista” (In: Poesia.BR – 1980. Azougue, 2012). Não existe singularidade no vazio, então, qual o universo de diálogo de sua obra poética?

FM | A força maior veio sempre da diversidade. E não somente diversidade literária. Menos ainda restrita ao ambiente poético. Se pensarmos em livros marcantes de minha infância entre os títulos que se impõem estão Crime e castigo (Dostoievsky), Paraíso perdido (Milton), O Conde de Monte Cristo (Dumas, pai), O tronco do ipê (Alencar), aos quais foram se somando, na primeira adolescência, títulos como A ilha do tesouro e 20 mil léguas submarinas (ambos de Julio Verne), Memórias do cárcere (Graciliano Ramos) e uma pedrada certeira na minha janela que dava para o mundo: Os 120 dias de Sodoma (Sade). No entanto, eu era fascinado por outras fontes preciosas, como as revistas do Príncipe Valente (Hal Foster), os desenhos animados do Gato Félix (Otto Messmer), peças de teatro como O balcão (Genet), O arquiteto e o imperador da Assíria (Arrabal) e Marat/Sade (Peter Weiss). Esta então me apaixonava desde a estranheza do título: A Perseguição e Assassinato de Jean-Paul Marat encenado pelos internos do Hospício de Charenton sob direção do Senhor de Sade. É bem possível que venha daí a extensão territorial do título de um livro meu: Os miseráveis tormentos da linguagem e as seduções do inferno nos instantes trágicos do amor de Barbus & Lozna (1998). O mundo das afinidades é uma colcha de retalhos. Resultamos de fricções saudáveis com todas as pedras da existência que nos despertam alguma inquietação. E por vezes somos tocados de forma indireta: somente fui ler O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde (Stevenson), após uma adaptação deste romance para a televisão, a telenovela O médico e o monstro, que eu via graças a um espelho bem posicionado pelo acaso em meu quarto, porque minha mãe achava que eu não tinha idade para tanto. Li primeiramente Tolstoy e Dostoievsky em adaptações de seus romances para fotonovela. Mas não posso esquecer a música, que foi o meu maior arsenal de afinidades, as letras, arranjos, instrumentos, a voz, sempre tive verdadeira fascinação pelos detalhes.

MS | Dentre o que escreveu, tem algo, algum livro específico ou ciclo de poemas, que te agrade mais?

FM | Gosto muito do que representa em minha vida o momento em que escrevi Cinzas do sol. Também mantenho muito presente em mim a escritura, praticamente sob efeito de  morfina, da série Blacktown Hospital Bed 23. São dois textos bem acentuados pelo medo da morte: a de minha avó materna, no primeiro caso, e a minha própria, no segundo. Em face disto, são também textos que acentuaram tanto a minha escrita quanto a minha visão de mundo. Cinzas do sol me pôs no centro de minha criação, como personagem inarredável de seu cenário, enquanto que Blacktown Hospital Bed 23 me definiu melhor as condições de parto, a magia do improviso, essa relação entranhável entre a letra e o sangue. Graças a este acento visceral me foi possível chegar à escritura a quatro mãos de dois livros, que não estão presentes em A vida inesperada: Overnight medley e Em silêncio, o primeiro escrito com o mexicano Manuel Iris, o segundo com a brasileira Viviane de Santana Paulo, ambos publicados em 2014. Os textos mencionados não são preferidos ou melhores em relação aos demais. Eu poderia aqui remeter a particularidades essenciais durante a criação de cada um deles. Mas reconheço, isto sim, o quanto que ambos foram impactantes em minha vida.

MS | Recentemente você gravou um vídeo intitulado Abismo minucioso, que registra a criação de três poemas automáticos por você a partir de temas propostos na hora pelo artista plástico Valdir Rocha. Por outro lado, você vem reescrevendo e rearranjando sua obra poética para A vida inesperada. Como você equaciona esse trânsito entre os opostos aparentes que são a escritura automática e a reescritura?

FM | Não vejo em que os dois termos se oponham entre si. A pedra de toque da existência humana é a dúvida, a inquietude, o descompasso, a fração, o risco, tudo isto sempre me pareceu levar a uma cama bem quentinha e harmoniosa entre a escritura automática e a reescritura. Não consigo entender como a criação possa ser algo sofrido na mesma proporção em que não vejo motivo para o criador não aceitar um deslize ocasional e tratar de ajustá-lo. Eu não tenho nenhuma dificuldade em criar, o que não significa que não erre. Acho que os dois termos são evocados de forma intencionalmente equivocada. Não por ti, claro. A reescritura pressupõe uma obsessão racionalista de controle extremo sobre a criação? A escritura automática nos leva a um ritual de instantaneidade que nos torna alheios a qualquer noção estética?

MS | O debate sobre o assunto parece ter se cristalizado em um oposicionismo caricato e reducionista entre dois elementos dialógicos da criação, que não operam em separado senão sob graves prejuízos. Mas, de onde costumam partir seus poemas? Planeja seus livros antes de escrevê-los? O que leva você a se sentar para escrever um poema?

FM | Eu não me sento para escrever. Desconfio que a minha ideia de planejamento da criação seja a mesma de um compositor sinfônico. Andamentos, fraseados, hora de entrada de cada instrumento, tudo isto me vem como uma avalanche, em geral não anoto nada, mesmo no caso dos textos mais extensos. Percebo a trilha que busca a escrita e vou lhe dando total liberdade de definir seu curso. Em geral, escrevo muito rapidamente. Dias, semanas ou meses, a depender da extensão da viagem. O vulto do livro surge no horizonte como um sinal de vida. Evidente que duas coisas se passam aqui: tanto a aventura vai se intensificando na medida em que há melhor domínio dos instrumentos, quanto não me privo de pôr à prova as intenções da escrita, revendo cada detalhe desse aparente delírio. E sempre encontro erros, até porque há uma insatisfação perene, um alto registro de exigência ou inconformismo.

MS | Paralelo à criação poética você tem desenvolvido uma intensa atividade no campo das artes visuais – quase sempre numa peculiaríssima forma de colagem digital a partir de material fotográfico prévio produzido por você mesmo –, sei que já afirmastes que ambas (poesia e plástica) têm sua razão de ser no poeta, mas crês que há uma relação de influência direta entre as duas ou são áreas de atuação distintas que encontram seu ponto de interseção unicamente na sua volúpia criativa?

FM | Naturalmente há um ponto de fusão entre imagem plástica e poética. Assim como há certo charme em dizer que o poeta está por trás de tudo. O campo das classificações é tão danoso à criação que por vezes alguns artistas se valem desse charme para fugir dos escaninhos viciados da academia. Eu gosto de criar. Conheço as minhas limitações e constantemente me desafio sem perda de autocrítica. Quando digo que não sou artista plástico isto significa que, ao criar, não parto de uma essência plástica. O mesmo posso dizer quando componho letras de canção ou eventualmente arrisco alguma melodia. No entanto, tua observação é no sentido de uma influência e neste sentido o mundo plástico está entranhado em mim desde muito cedo. Um cunhado de minha avó materna era um médico pintor, afeito a naturezas mortas, algumas das quais se tornaram os primeiros abismos fascinantes de minha infância. Eu mesmo usava guaches e papel cartão para copiar capas de romances do José de Alencar. E recortava figuras em revistas, dando-lhes imaginária tridimensionalidade, incluindo vozes e enredos. Quando ali pelos 30 anos comecei a fazer colagens o universo plástico que me veio à tona foi exatamente o das naturezas mortas. Criar uma atmosfera impactante pela aproximação de imagens distintas entre si não me fascinava tanto quanto descobrir intimidades até então não percebidas entre elas. Eu queria criar um mundo novo e não apenas evidenciar o desconforto de um mundo visível.

MS | Outro campo de atuação em que você tem se empenhado atualmente tem sido a organização e tradução de livros de autores pouco usuais em nosso panorama cultural. Deste trabalho nos dá testemunho um volume de ensaios de Aldo Pellegrini (Sobre Surrealismo. Sol Negro, 2013), uma antologia de viagens do surrealismo (Viagens do Surrealismo. Edições Nephelibata, 2014), três volumes de Vicente Huidobro (III novelas exemplares; Tremor de Céu; Traduções do Universo, todos pela Sol Negro Edições), e ainda uma antologia da poesia surrealista na América (Breviário poético do Surrealismo na América), todos recentemente editados ou ainda no prelo. O que o levou à escolha desses temas e autores?

FM | Não se trata de atualmente. Venho fazendo isto desde 1998, quando a Ediouro publicou uma antologia de poemas do Federico García Lorca, traduzida e prefaciada por mim. A mesma editora também publicou tradução minha de um livro de contos do cubano Guillermo Cabrera Infante. Para a Fundação Memorial da América Latina publiquei libretos reunindo textos do espanhol Jorge Rodríguez Padrón e do porto-riquenho José Luis Vega. Posteriormente publiquei um livro de contos do costarriquenho Alfonso Peña, uma antologia poética do venezuelano Juan Calzadilla e ensaios do nicaraguense Pablo Antonio Cuadra. Quando saiu, em 1998, uma edição de meu Escritura conquistada – volume de entrevistas a poetas ibero-americanos que anos depois seria ampliado substancialmente e editado, em dois tomos, na Venezuela –, ao me fazer uma entrevista o José Castello eu lhe disse que minha vida talvez fosse facilitada, em termos de mercado, se eu tivesse me inclinado pela pesquisa e tradução de literatura de língua francesa ou inglesa. Não foi um gesto suicida, mas antes uma compreensão do papel que um intelectual deve representar frente à cultura de seu país. Qualquer profissional sério enfrenta obstáculos ligados à frivolidade de mercado. Não seria diferente com o pesquisador de literatura. O destaque maior que eu daria aqui seria ao acervo de matérias publicadas na Agulha Revista de Cultura, assinadas por inúmeros colaboradores, que evidencia uma carência de conhecimento do leitor brasileiro acerca de situações relevantes na literatura de países periféricos a certo vício de mercado. O Brasil precisa ser desfeito, refeito ou simplesmente inventado? Já é um pouco tarde para qualquer um desses experimentos. Apenas uma coisa é certa em nossa realidade cultural: o band-aid custa caro.

MS | Esquecemos algo?

FM | O pintor William Turner, ao morrer, de súbito exclamou: “O sol é Deus!” A todo instante nos esquecemos disto, da súbita riqueza do inesperado. De um modo geral, somos viciados em planos e frustrações. Satisfazemos a nossa vida com esses dois argumentos: o que um dia queremos realizar e o infortúnio do que não foi possível. Evidente que nada disto importa. O gratificante na vida é o que ocorro alheio ao nosso controle. O que nos exige a vida é que deixemos a casa sempre aberta ao inesperado. Eu tenho levado a minha vida sob o salvo conduto do acaso. Abraxas

 

 

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FLORIANO MARTINS | Dez poemas do livro A vida inesperada

 

EQUILIBRISTA
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Se um de nós desfolhasse a memória do acaso

decerto não alcançaria mais do que ruínas de silêncio.

De um lado ou de outro de tudo quanto vimos

não se descortina dia algum o motivo de não termos ali chegado antes.

As decisões mais simples se deixaram despir pela ansiedade.

Não mate alguém antes de saber a qual deus confiará sua lembrança.

Os nomes estão debilitando as raízes do que plantamos.

Evitemos os nomes. As orações devem regar o inominável.

O abismo deve guardar lugar para aqueles que jamais regressarão.

Não há conforto na dúvida. Ninguém espera por si fingindo estar ausente.

O verbo se rompe como uma aldeia descarnada pela imensidão,

o anúncio de escadas trotando na noite ou o súbito desapego

com que atingimos as vertigens mais insuspeitas.

Destripar a consciência dos segredos antes que eles cresçam.

Todas as causas morrem com seus alfabetos incompletos.

Os castigos sucedem as crenças, a inocência masca uma ração diária de pecados.

Passaremos a vida inteira buscando uma razão para esta conversa.

Cada um de nós, quando afinal descobre do que é feito,

encontra o celeiro vazio e o horizonte estendido no varal.

 

 

SIAMESES
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Eu agora devo sofrer o castigo de cada lágrima,

como a trapaça de um espelho sem caráter algum.

Não importa o quanto a honra soletre teu orgulho,

certamente já havíamos feito mal um ao outro.

A morte é uma sutileza corroída de inocência.

Cadáveres que não se permitem jamais enterrar

promulgam leis tanto vulgares quanto virulentas,

paciente tradição da mais perpétua iniquidade.

Eu te convido a visitar a província de meus erros.

Se nos recortássemos, qual de nós dois gritaria?

A quem caberia a primeira febre de indulgência?

A tua orelha esquerda não tem a mesma cicatriz

que gravei na minha tentando escutar tua voz.

O meu sorriso desconhece a alegria perdida

do que imagino dias futuros de teu passado feliz.

Jamais fomos a parte alguma, nenhum remorso,

apenas o homem estimando o que pensa criar.

Ainda pretendes sair daqui correndo desse jeito?

Não me deixes nunca a uma milha de mim mesmo.

Eu não saberia atender a tudo quanto planejei

longe de ti, de mim, buscando nova intimidade.

 

 

OBSOLETO
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A pedra cerzida na coxa do tempo,

a consulta atribuída ao acaso, um filho

que passou por aqui e não retornou…

Os cascalhos de um enigma corrente

se empilham em uma lixeira imaginária.

Jamais saímos daqui a parte alguma.

A sombra se esconde sob a paisagem,

o espírito se enamora do espelho,

o esqueleto tropeça em seus discos.

Tudo parece agir como uma relíquia.

Sem notas fiscais ou de pé de página.

O mundo se move como uma alegoria

de truques gastos e retrato embaçado.

Não importa quanto dissemos adeus.

Jamais nos livramos de nós mesmos.

 

 

O ERUDITO
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Quantas são as perdas soterradas

sob o olhar ilegível do filho?

Quatro ou cinco casas invadidas

antes que o rio desviasse o curso

do abismo que julgávamos nosso.

Uma pedra no nome e o caminho se desfaz.

Não encontro mais quem busco

na outra metade exposta do acaso.

Quem furta a mensagem e soterra

sua ausência com piolhos indecisos?

Quantas vezes aqui estive a narrar

a biografia selvagem das pedras

que se recusaram a mascar

o arenito de seus próprios sonhos?

Não contem quanto pode uma vida

se repetir em cada um de nós.

 

 

ANTES QUE AS NOITES SE FOSSEM E A ALMA CEGASSE AO MERGULHAR NO SILÊNCIO DE SEUS OSSOS
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As noites reclamam longe de casa, quase sempre sem ajuda de nenhum amigo.

Elas não sabem como amparar as tempestades e trepidam como se fossem a última temperatura do planeta.

 

As noites estão cobertas por uma displicência que não raro se disfarça em dores amenas e repetidas.

Eu vejo os restos de tua sombra ajustando as luzes para que não se percam de todo.

O mundo se desfez em um vagão irreconhecível.

Nem era tão distante assim o caminho de volta ao milharal dos sonhos.

 

As noites passaram a noite acreditando em uma quinta estação.

Muitos de nós simplesmente vegetaram, protegidos por uma cortina de fumaça.

Outros não souberam afinar a esperança.

 

As noites se multiplicaram à toa, em dissonância com seus espectros,

Todos encontramos a casa repleta de fantasmas e o coração vazio.

 

Nenhum de nós soube ser Joe Cocker.

 

 

PARA QUE ME TENHAS POR COMPLETO TERÁS QUE DESCOBRIR A LETRA QUE FALTA
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O teu corpo estava exposto sobre a mesa com seu monstruoso desgaste,

a pele recoberta de desordens comuns, como uma imagem propensa ao sacrifício.

Os mesmos convidados de sempre reconheciam seu lugar: os símbolos sabiam a quem pertenciam.

O teu corpo estava consagrado à repetição.

Foi vulgarizado por ela e não pela chave mágica do excesso.

Quando te encontrei estavas nua, dedicada à mecânica de inúmeros erros: sucessão vaidosa do clímax como uma retórica da luxúria.

Jamais pensei em indagar teu nome.

Onde estavas me parecia suficiente, como me tocavas, o que vivíamos…

Até que os espelhos começaram a se romper, estrábicos, aturdidos, despedaçados em seu caráter, e dei por conta do que não refletias.

Guardavas um menir, uma adaga, um verbo ⎼ um atributo com o qual te recusavas a sentar na velha mesa.

 

 

COXAS DE ZOFIA BESZCZYŃSKA
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Esta noite quebrei um corpo.

Ao voltar para casa não soube mais onde me encontrar.

Foi quando te vi, cruzando o horizonte que antes não estava ali.

A noite abriu em mim um modo estranho de se revelar.

Comecei a eliminar da memória tudo o que não me diz respeito.

Pretendia que me beijasses apenas o essencial, a reserva mais íntima de tudo o que flui.

Resumir em um beijo todo esse ninho de cataclismos.

A tua doçura criou uma inundação em meu ser.

Não te vás. Ainda não quero que saias de dentro de mim.

Só então percebi que começava a delirar:

A noite reconhece suas pequenas sombras vagando pelas calçadas incertas.

Com elas disfarça a solidão com que gravita nos pomares do tempo.

Os espelhos espalhados contemplam como danças em uma pele fina de algodão quase transparente.

 

E não parei mais. Nunca mais.

 

 

OLHOS DE LINDA PORTER
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Ela sempre esteve ali.

Reconciliada com seus abismos, dando vida às minhas obsessões.

Parecia flutuar na memória, em proporções que mal eu traduzia assumiam formas distintas.

Como permaneceu linda com o tempo afeito ao vinho de seus lábios.

As canções que escrevemos foram entrando em casa como noites possuídas por uma doçura incomum.

Ela me dizia seu nome apenas com o olhar, onde em seguida eu anotava outros versos, pequenas luzes sob o arco de nossas costelas.

Ao lado do piano deixamos cair seu vestido, assim como deixamos de contar os murmúrios do tempo.

Mesmo quando as dores se foram, com suas gotas cortantes, ainda assim, ela sempre esteve ali, e não pude jamais deixar de tê-la comigo.

 

Com o passar dos anos, sua música aprendeu a vagar sozinha pela casa.

 

 

NA SOLEIRA DO ABISMO
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A memória do ocorrido parecia tão desfeita quanto o corpo de Selma. A casa ausentava-se do bairro, imersa em um matagal fechado. A noite revirando o interior do lugar. Ninguém esperava que Deus entrasse ali sozinho. Eduardo afagando os retalhos do corpo da amada. Alheio ao horror que ele próprio lapidara, fita o vazio como se pousasse alguma recordação feliz. Parecia quase sorrir em certo momento. E amparado em um semblante pueril tocava a intimidade dos restos de Selma. Queria ouvi-la gemendo e pedindo que não parasse. Sua mão, no entanto, retornava descontente daquele púbis marcado a sangue. Eduardo soluçava desamparado. A casa se abrindo a seus olhos como uma transparência frondosa. O mundo visível de sua danação. Da banheira podia distinguir o vulto que permanecia na poltrona, como se esperasse a hora de entrar em cena. Onde estaria a voz de Selma? Quem a teria levado para longe dela? Eduardo voltou a fitar o vazio, acariciando um mamilo quase de todo despregado do seio daquele corpo imóvel.

 

 

DEVOÇÃO
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Teu corpo é feito de lábios. Onde quer que eu te beije, renasço. Um secreto plantio de cores, penugens, revoadas através das estações. Acalanto de senhas, dos pés à nuca. O que sei de ti é o que encontro a cada caminhada por teu corpo. À noite admiro teus limites, como me preenchem. Adormeço entre luzes flutuantes, renomeando os arcanos do fogo em tua pele. Assim te amo. O dia aprende a ler as migrações de teu desejo. Estranhas formas que mudam de olhar enquanto as alimentas. Eu sei como te fazes assim. Como pousas no horizonte de meu ser, com tudo o que vai ficando pelo caminho. Sem que me chames. Tudo em mim sabe onde te encontrar. Meus lábios são a fábula de teu corpo.

 

 

 

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FLORIANO MARTINSA vida inesperada (Poemas)

ARC Edições | Ceará, 2015

Capa, ensaio fotográfico interno & vinheta, Floriano Martins

Revisão & projeto gráfico © Floriano Martins e Márcio Simões

Desenho de FM ficha técnica © Fátima Lodo Andrade da Silva

Desenho de FM orelha 1 © Adriel Contieri

Orelhas © Glaucia Olinger

4ª capa @ Susana Wald, Renata Sodré Costa Leite

Brochura, 584pgs

Formato 14×21 cm

 




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