Labirintos


Labirintos: A estética da poesia de Luis Serguilha o poeta do submundo

 

A poesia reconstitui-se na língua anterior ao conhecimento e esculpe as suas sismologias-tapeçarias no mundo-outro como uma partilha do desassossego, uma sanguinidade do poema-poeta-poesia-liberdade na exploração mutual do enigma, na germinalidade do deserto, na actualização do silabário elementar da harmonia e da vertigem fertilizadora-sacralizadora do olhar-perdido-do(no)-mundo.[1]

O presente artigo trata-se de um ensaio poético percorrendo as entrelinhas de alguns poemas da obra do escritor Luis Serguilha, poeta e ensaísta português contemporâneo. Escritor/Obra/Leitor, provocar, instigar, incitar, inflamar, seduzir, suscitar por fim germinar. Da provocação de um ao incomodo do outro, e é na eminente colisão entre o provocador e o provocado que em uma fração de segundos o inesperado pode acontecer.

Quando Camus escreveu o ensaio sobre a obra de Kafka ele afirmou que:

Toda a arte de Kafka consiste em obrigar o leitor a reler. Seus desenlaces, ou suas faltas de desenlace, sugerem explicações, mas que não são reveladas com clareza e exigem, para nos parecerem fundadas, que a história seja relida sob um novo ângulo. […] não estaríamos certos se quiséssemos, em Kafka, interpretar tudo minuciosamente. Um símbolo está sempre expresso no sentido geral e, por mais precisa que seja a tradução, um artista só pode recuperar, através dela, o movimento: não há literalidade. Além disso, nada é mais difícil de entender que uma obra simbólica. Um símbolo ultrapassa sempre quem faz uso dele e o leva a dizer mais, na realidade, do que tem intenção de dizer. (CAMUS, 1989, p. 149).

A poesia de Serguilha seria um emaranhado de palavras, tiradas de um vocabulário controlado de geociências que tal como Camus afirma sobre Kafka tem-se a necessidade da releitura para se buscar seu entendimento? Sim/Não. Obviamente devemos respeitar as diferenças, não há, e nem é o que se quer neste ensaio, fazer comparações de uma escrita com a outra, pois o que Kafka conseguiu nenhum outro escritor chegou nem perto, e nem a prosa de Serguilha se compara a de Kafka. Diferenças estabelecidas, estéticas distintas, releituras necessária, mas oriento: uma releitura na busca não de compreensão, e sim de sensações. Permita-se, entregando-se ao deslocamento inevitável do corpo/devir em magmas de sensações.

Para compreender a escrita serguilhiana, a poesia imagética, sinestésica deste poeta vai além da simples releitura, sua construção poética muitas vezes parece sem nexo e desleixa, onde as palavras parecem completamente flutuando em precipícios de vácuos em busca de outras palavras/signos que deem sentido a sua existência, mas na verdade o que vemos são construções imagéticas de sentido que vão além da percepção e concepção teóricas, sendo muito mais embasadas a partir de uma apreciação idealista ou empirista, pois é necessário um estar devir no mundo, uma relação completa entre significante e significado como nos mostra Merleau-Ponty:

[…] a intenção significativa em mim (como também no ouvinte que a reencontra ao me escutar), mesmo que deva em seguida frutificar-se em “pensamentos”, no momento é apenas um vazio determinado a ser preenchido pelas palavras – o excesso do que quero dizer sobre aquilo que é ou já foi dito (1960, p. 134).

Deste modo o pensamento não é exterior à expressão, tampouco ele existe antes que ela se concretize, sejam em palavras, gestos, sons ou cores, e a escrita de Serguilha não é diferente disso, o que exige para se compreender a escrita deste poeta, é necessário todo um estar/pertencer ao mundo, à apreciação e o entendimento da escrita desse poeta começa nesse contato primordial que é sujeito/mundo-leitor/texto-leitor/escritor e vice-versa. Por isso minha imersão em sua escrita não foi em busca de significados teóricos e sim de sensações, e percepções diversas, e controversas, que me fizessem sentir a completude do estar no mundo, há que se existir essa vinculação entre leitor/universo, afinal somos parte do mundo como o mundo é parte de nós e a poesia é também parte dessa mistura cósmica do universo.

Respirei fundo e imergi em um mar de sensações, submergi em um mar de lava, mergulhei em um oceano de palavras que dançam. Adentrar em sua poesia é sinestésico, labiríntico, o poeta do submundo nos leva a uma viagem alucinógena que perpassa labirintos de dores, cores e olores, uma diversidade de sensações repletas de significados extra-sensoriais, que se transportam a um corpo imerso em um mundo repleto de significações que só os mais atentos, aqueles que sabem ler entrelinhas, tem a percepção de sua grandeza. Pois ainda citando Merleau-Ponty:

O que é a palavra no sentido da linguagem empírica – isto é a chamada oportuna de um signo preestabelecido – não o é com a relação a linguagem autêntica. É como disse Mallarmé, a moeda gasta que colocam em silêncio na minha mão. Pelo contrario, a palavra verdadeira, aquela que significa, que torna enfim presente a “ausente de todos os buquês” e liberta o sentido cativo na coisa, não passa de silêncio com relação ao uso empírico, uma vez que não vai até o nome comum. A linguagem é por si, oblíqua e autônoma e, e se lhe acontece significar diretamente um pensamento ou uma coisa, tratasse apenas de poder secundário, derivado de sua vida interior. Portanto, como um tecelão, o escritor trabalha pelo avesso: lida apenas com a linguagem, e é assim que de repente se encontra rodeado de sentido. (1991, p.45)

Como uma Espeleóloga escavo, e me aprofundo em cada centímetro da poesia cárstica e devastadora do poeta do submundo. Um vocabulário insólito, por vezes esotérico, outras mitológico, repleto de cores, sons, olores e sabores, e até mesmo o tato está lá, sentimos a pele queimar ao adentrar na alma do poema poesia vulcânica, de um mundo repleto de almas que gritam e urge a dor da solidão de persistir em um mundo sem alma, as raízes imagéticas fixam no subsolo do inconsciente trazendo a tona lavas de sensações como expelidas de um vulcão em erupção.  A poesia de Serguilha é atemporal, poesia que vem “lava” petrifica e se faz permanente.

Poesia arte a escrita serguilhiana rompe a barreira linguística e traz uma nova forma de fazer poesia. Sua escrita cósmica pouco entendida e mal compreendida por muitos, é mais que literatura ou poesia, ou mesmo filosofia, sua escrita é devir. Estamos diante de um texto que desafia e desestrutura toda a lógica da escrita e da própria língua portuguesa. Serguilha tece com as palavras e constrói poesia como Cézanne pintava seus quadros, ele busca a percepção do universo de uma forma para além do que se vê. Filosofia-literatura-poesia-pintura-musica–ARTE, pois é com a escrita deste Poeta que estabeleço o encontro a partir de uma experiência estética que reclama das expressões que sem ela o universo permanece mudo, ela fala, ela grita, ela canta, encanta, ela dança a todos os meus sentidos. De sua escrita germinam todos os sentimentos de apreciação do universo, se palavras desconexas para muitos que parcos de sentimentos e rasos de emoções transitam como zumbis em mundo caótico e repleto de felicidade barata e falsos sorrisos, para mim que busco através do olhar o que está alem da retina, do que vai além do corpo, da alma, do cosmos, é filosofia.

Poesia de forte impacto imagético a escrita serguilhiana, como poética do devaneio, traz imagens arquetípicas que se integram em narrativas de uma força criadora, ou poésis do mito, uma narrativa enérgica de imagens e símbolos, que perpassam outras poéticas, outras formas de arte, caminhos que se abrem a outros caminhos. Compreender toda essa poética, esse jogo de palavras, um caleidoscópio de signos, que a cada movimento nos leva a outras cores, e é neste jogo narrativo do intercruzamento que se dá na própria corporeidade onde percebemos a possibilidade do diálogo entre culturas artísticas e literárias diversas na escrita serguilhiana. Sua escrita nos traz para dentro desse redemoinho inter-cultural. Esse é o desafio que nos é provocado a partir da leitura e imersão na poesia desse escritor. Para tanto, a necessidade estética de uma abertura permanente na “zona em que a ideação e a imagética permutam infindavelmente suas ações” (Bachelar, 1994, p.57). Este campo de forças é que propicia identidades e diferenciações neste intercâmbio incessante que podemos perceber na fala de Chauí:

Claudel dizia que há um certo azul do mar tão azul que somente o sangue é mais vermelho. Valéry falava no secreto negrume do leite que só é dado por sua brancura. Proust falava numa pequena frase musical feita de doçura retrátil e friorenta. Merleau-Ponty fala num olho que apalpa cores e superfícies, num pensar que tateia idéias para encontrar uma direção de pensamento, numa idéia sensível que nos possui mais do que a possuímos, como o pintor que se sente visto pelas coisas enquanto as vê para pintá-las.(1983, p.252).

A reversibilidade deste olho tateante que nos vê, deste silêncio que nos diz, deste movimento que nos detém está também incrustada na obra estética. E a poesia faz esse movimento, perceptível também nas artes plásticas, seja no surrealismo nas pinturas de René Magritte que nos traz a tona um mundo onírico do inconsciente, que nos impacta com suas experiências estéticas com a capacidade que tem de tornar insólita a reconstrução do mais banal cotidiano.

A poesia de Serguilha deve ser lida com mente, alma e corpo, quando o leio me questiono perante o universo e questiono o universo perante minha existência, dessa forma sua poesia se faz em minhas mãos filosofia; quando entrego minha alma no ritmo de suas palavras que cantam e dançam nos devaneios de meu mundo avernal perdida nos labirintos da sua escrita, ela é poesia é musica é dança; e quando entrego meu corpo todo inteiro nesse devir de palavras que fecundam meus poros, a poesia é pintura é cinema é teatro e tudo isso quando juntas, se faz pensar, de um encontro que se estabelece a partir de uma experiência estética que reclama de uma expressão que sem ela permanece mudo, ela por fim fala aos meus sentidos. A poesia de Serguilha reproduz em palavras a realidade com originalidade, de uma capacidade simbólica que vai além dos limites, que até então ainda não havia presenciado, ela é vanguarda, pois está muito a frente de seu tempo, ela foge de critérios banais e se faz pensável.

A poesia de Serguilha, assim como Merleau-Ponty (1994) nos mostra em seus textos, busca apreender o sentido da experiência em estado nascente, quer seja na percepção quer seja na linguagem, não há distinção entre corpo e alma. Assim é a escrita serguilhiana corpo-alma, mundo-poesia indissociável. Enquanto Cézanne “germina com a paisagem“ e a transforma em pintura, Serguilha “germina com a paisagem“ e a transforma em poesia, a escrita poética deste escritor revela essa natureza inumana do homem, e se Cézanne “escreve ao pintar o que ainda não foi pintado e torna-o absolutamente pintura” (idem, p.20), Serguilha “pinta ao escrever o que ainda não foi escrito, e torna-o absolutamente em poesia”.

A poesia serguilhiana causa muitas vezes estranheza, ela é potência em palavras e sua linguagem reproduz silêncio, conforme Merleau-Ponty:

Ora, se eliminarmos da mente a idéia de um texto original de que a nossa linguagem seria a tradução ou a versão cifrada, veremos que a idéia de uma expressão completa é destituída de sentido, que toda linguagem é indireta e alusiva, é se preferir silêncio (1991, p.44)

Em relação ao escritor não é diferente, pois para se expressar, o sujeito utiliza-se das significações disponíveis em seu universo simbólico, significações essas que são instituídas em seu tempo pela mesma operação expressiva. Merleau-Ponty diz que a palavra: “Tateia em torno de uma intenção de significar que não se guia por um texto que justamente está em via de escrevê-lo” (1991, p.47), essa operação expressiva é a mesma que nos deparamos excepcionalmente nos grandes escritores. Neste caso, trata-se de uma espécie de deformação coerente que a obra impõe aos significados existentes, fazendo-o para dizer o que jamais fora dito antes. Segundo Merleau-Ponty, é justamente esta operação criadora que representa o estilo do escritor e que imprime na linguagem corriqueira uma torção de sentido, afundado seu equilíbrio para fazê-la dizer e significar o novo. “Malraux observa que a pintura e a linguagem são comparáveis apenas quando as afastamos daquilo que “representam” para reuni-las na categoria da expressão criadora” (Merleau-Ponty, 1991. p.47).

O significado insurge da palavra, porém não é reduzido a ele, encerra uma amostra de significações implícitas e de limites imprecisos que vão além de sua troca banal; esse sentido é o destino de ter seu lugar no movimento de expressão, que retoma a si mesmo para lançar-se além. Desta forma a palavra tem o sentido sem, no entanto, contê-lo. Esse sentido vai sustentar a palavra por dentro, e vice-versa. O sentido brota através da palavra, projetando no silêncio articulador da linguagem o que este queria e sozinho não obtinha. Por um lado, porque o silêncio é o fundo sobre o qual se desdobra sempre toda linguagem. Neste sentido, a expressão não esgota o mistério do exprimido, que nos remete para o fundo obscuro de nossa presença ao mundo. Por outro lado, a significação sempre ultrapassa o significante. Assim, é a poesia de Serguilha ela fala a todos os sentidos expressivos em sua originalidade que nascem do excesso das significações vividas sobre as significações adquiridas.

Me lanço à poesia e é em Mistral vento catábatico, vento que desce as colinas, vento seco, frio, outonal que zumbe em minha janela, que solto meu corpo e deixo que ele Mistral me guie na minha viagem através do espelho, que me arremessa para dentro de um país de sensações cinematográficas, pois nele me reencontro com meu cinema; com a literatura onde me deparo com meus ícones e meus heróis surfam em suas linhas de ondas sonoras performáticas. É cósmica a viagem-leitura da poesia em Mistral, ele empurra meu corpo rochedo abaixo e deslizo para dentro de suas câmaras seculares, me deparo em encruzilhadas, e me encontro com a diversidade de escolhas de caminhos labirínticos diversos, enquanto submirjo em sonhos do mestre Kurosawa, a integração rítmica da poesia em Mistral me leva a mergulhar em sonhos rítmicos tridimensionais, busco Bowie Ashes to Ashes para me acompanhar nesse passeio pelos bosques cósmicos de constelações plurais da transmigração e desmaterialização da poesia secular dos jardins babélicos de Mistral, passeio pelos bosques solares e encantados dos sonhos de Alice que brinca em países de maravilhas, atravesso espelhos do mestre imagético Lewis Carrol, corro em selvas de significados diversos atrás do coelho branco e na sua incandescência milenar me afogo nos labirintos kafkianos de minha mente em constante efervescência. Carne viva, coração exposto sangro e danço ao ritmo delicioso da Nouvelle vague de Godard, tal como a pintura e o cinema, a poesia de Serguilha compactua com elas e nos mostra uma relação muito particular com o mundo em que vivemos, o poeta nos traz o cinema para seus textos e transforma a poesia em uma soma de imagens em movimentos “coração-da-tempestade, as bússolas desidratadas esgrimem um alpendre invisível na mensurabilidade da superfície que descruza as corolas-das-primeiras-aprendizagens como um nó desfocado da ave a lavrar as estratégias anfíbias da dor do DEVIR”[2], a dor da perda, do coração que se parte em mil pedaços e escorre como água que alimenta a terra em poças de sangue. E a viagem a Mistral continua com Bowie ditando o ritmo, Space Oddity. Sua poesia me leva adentrar nas fabulas de La Fontaine e percebo percorrendo as estreitas ruas seculares da cidade dos livros onde Inês foi rainha post mortem. Encontro gatos e ratos confabulando noites insones embriagados das luzes astronômicas de Major Tom. Desenham iluminuras espectrais e se equilibram nas reentrâncias dos ancoradouros do rio Mondego.  Na poesia de Garcia Lorca vou a Andaluzia e me deparo com o poeta maior da babel literária que encontro nas entrelinhas da poesia serguilhiana, “amor, entranhas, morte viva, […] espero tuas palavras escritas […] o ar é imortal, a pedra inerte”[3]. Logo ali mais adiante me deparo com a dor da contorção dos abdomens, que em soluços de choro ininterruptos me levam ao cinema cáustico, arrebatador, de Las Von Trier, me jogo no escuro e danço ao ritmo de Björk a melancolia se abate em minh’alma que desesperadamente busca o “flanco-faunistico dos pirilampos”[4], mas me perco na neblina densa da cidade banhada pelas águas turvas que corroem os ossos daqueles que ali jazem em seu sepulcro. E no escuro meu corpo vagueia perdido ao som dos pássaros noturnos, nas ruínas da poesia secular do poeta do submundo, quando me deparo na solidão de Morte em Veneza, e me dou conta que a poesia de Serguilha tal como Thomas Mann tem milhares de leituras em um único parágrafo, múltiplo poeta nos leva a angústia e ao delírio orgástico em um único parágrafo de sua poesia.

Os sabores delirantes e viscerais que minha alma percorre nesse mundo de maravilhas onde me delicio em banquetes poéticos da pintura de Magritte nitidez realista de um amor surrealista nas anomalias paradoxais da pulsionalidade dos labirintos astrológicos do cinema-poesia serguilhianos. Mistral ainda me faz sobrevoar a escultura poética de Rodin à força do beijo, do corpo que toca o mármore gelado da frieza do poeta-escultor de corações viscerais despetalados em rosas de desespero. As aves sinistras de Allan Poe que emparedadas solidificam a fertilidade alucinatória do leitor da poesia de Serguilha, olhos de gatos brilham no escuro da minha alma perdida no labirinto do país das maravilhas, meu sorriso que hora vinha fácil se perde em gargalhadas de monstros inebriados da fumaça de lagartos que descontraidamente fumam haxixe enquanto procuro o caminho de volta em meio a encruzilhadas que me levam a outros poemas de Serguilha.

E meu percurso pelas cales dos labirintos fáunicos da poesia serguilhiana prossegue na busca de meus Heróis, ainda ao som de Bowie, entorpecida pelas palavras dançarinas de Tartarugas-Bauhaus percepciono meu mundo na poesia desse escritor que domina meu universo de imaginação fértil dos heterônimos do meu ser em constante mutação heterônoma, afinal o poeta adverte “a cena-imaginária, antes de ser vista como alucinação, deve ser percebida como um desejo do inconsciente” (p.35)[5]. E o olor do sândalo invade meus sentidos enquanto meu corpo febril irradia luzes incandescentes da fúria da poesia dos Faunos que penetram meu corpo enquanto ele se funde as arvores dos pântanos das Iris verdes do poeta fauno rei mítico do Lácio, Faunus-Fatuus-Profeta que desafia e profere o destino da mitologia das invaginações dos corpos das ninfas de Afrodite que entorpecidas de êxtase me acompanham na jornada literária do pais de Koa’e que me apresenta a poesia devastadora e expressionista de Georg Trakl “no outono pássaros contam lendas de encantar”[6] e nas “sombras de Grodek”[7] florestas outonais ensanguentadas pela carne moribunda de guerreiros, dos sonhos crepusculares de Sebastião, pairam o silêncio dos espíritos dos heróis no fundo das almas dos salgueiros milenares nas veigas douradas, os lagos azuis , o sol sombrio abraçam meu corpo em crepúsculos de lamentos selvagens que em vertigem percorrem as negras noites sob as estrelas de um Deus irado enigmático, orgulhoso que se alimenta da dor atroz da chama escaldante dos alucinógenos. Esse passeio que a poesia de Serguilha faz pela poesia de Trakl é um grito silencioso, é azul lunar, dourado solar, rósea primavera. Nesse passeio entrelinha, vejo o rosto do menino poeta na janela de sua casa enquanto sua mãe na lida diária dos afazeres observa seu rebento perdido em pensamentos que o levam a um futuro longínquo, seus olhos pequenos verdes crepusculares sonham como que “embriagado pela seiva da papoula e do lamento do melro […] discreto, na escuridão da janela; e velharias dos antepassados… fantasia outonal […] escuro o dia do ano, triste infância, quando rapaz desceu às águas frias, peixes prateados, quietude semblante […] em noite cinzenta sua estrela vinha sobre ele…”[8]. Poeta adulto coração petrificado, o silêncio constante do pai a força inerente da mãe o fez hoje quem ele é, ruína do silêncio que gela a alma daquela que queima em ardor do mais puro amor, e no sonho de Sebastião sinto o odor da melancolia e adormeço sob a sombra do velho sabugueiro e sob meu corpo sinto a voz doce e prateada do anjo que me acompanha nessa jornada de inclusões alucinógenas em sonhos, quiçá sem retorno, na cartografia da poesia de Serguilha. E sua poesia PERFURA-DESFOCA-CATALIZA a língua escrita, como uma babel de sonhos, e em cascatas me deparo com as películas de Abel Ferrara, e penetro em cavernas onde vampiros de almas são governados pelo poeta do submundo, ele escolhe suas almas e se alimenta de cada espectro roubado, cada sorriso apagado, cada alegria destruída, seus tentáculos glaciais se emaranham em meu corpo e sou levada para o encovado além do que poderia imaginar ir, adentro mais profundamente do que podia suportar em sua poesia que devora cada segundo da minha sanidade, elipses de sombras liquefeitas em dilúvios de ondas magnéticas que enfeitiçam minh’alma e olhos de Serpentes devoram todos os meus sentidos, no grito sufocado pelos braços do poeta vejo cores suicidas em minha mente, abruptamente meu corpo se solta e busco desesperadamente algo em que me agarrar quando me dou conta que milhões de borboletas de todas as cores voam e dançam a volta de meu corpo carregando-o para adiante, percebo ele novamente Bowie – Absolute Beginners – meu anjo de todas as cores a dar o ritmo da música que me leva a flutuar entre nuvens de borboletas que me salvam da ira do poeta do submundo…

Rhinoceros Sindaicus o tectonismo a avalanche vulcânica poética fossilizada que transmigra em tempestades da psique dos incompreendidos, dos que tem fúria, fome, desejo daquilo que está além desse universo.  Como mensurar a poesia de Serguilha, onde encontrar parâmetros para justificar toda a fúria poética de sua escrita, desertor, transgressor da escrita poética, cristais de rocha, tatuagem na pele o perfume de sua escrita invade meus sentidos e em noites insones de minhas reminiscências, esquecer, lembrar, rememorar, o cinema, a pintura a própria literatura estão ali presas incrustadas como diamantes em pedra, não há como dimensionar tamanha fúria poética, eles dançam e compõem a poesia, como deve ser “um parte do outro, o outro parte do todo”, o todo indivisível e ao mesmo tempo múltiplo, movimento, luz câmera ação, Crash! – Existenz!, Bergman, Buñel, Salvador Dalí, meu corpo cósmico cravado como morangos em partes mutiladas pela ira do poeta que em lava-fogo destrói sonhos quimeras que como em quadros de Dalí derramam suas cores de rostos disformes surreais. Gritos de dor nos arredores museológicos dos escorpiões mitológicos, a poesia de Serguilha me leva a becos estreitos de uma cidade milenar e me perco em películas de Tarantino, drinks no inferno onde o poeta do submundo reina uno, e em oceanários encontro meu encouraçado potekin, lontras mergulham em meu universo e me pergunto o que mais pode ser escrito depois da poesia de Serguilha. A neblina cai e dos braços de Morfeu fujo para poder continuar adentrando mais e mais na poesia que me embriaga de vertigens psicóticas de imaginários mitológicos, e ao som inebriante e alucinógenos de Across the Universe permaneço nesta jornada na companhia dos quatro anjos do apocalipse. Minha incursão pelo precipício caustico da escrita de Rhinoceros lâminas solares das agulhas de Trainspotting percorrem minhas veias abrindo caminhos de onde jorram do meu corpo sangue denso, vermelho, vivo, pulsante, como morangos esmagados meu corpo aos poucos vai sendo lavado banhado, da angustia, dos olhares que devoram almas na busca de uma resposta para o verdadeiro sentido da vida. Já não há mais saída. Caminho sem volta. Só me resta ir em frente, e vou deixando os vestígios de minhas passagens em seu corpo-poema, tua fúria, teu ódio, toda tua ira poética, me atravessam como laminas que esculpem cicatrizes em minha alma e sangro submersa na imensidão das tuas palavras naufragas de amor. E logo vejo os pássaros de Hitchcock vindo em minha direção. Pulo. Salto o precipício. Pego carona nas assas das andorinhas leitoras da tua poesia. Sigo para o próximo poema.

Vardarac como um vulcão em fúria a poesia de Serguilha surge arrastando tudo o que vê pela frente Vardarac Hikarido, perpetua sua fúria e arrasta a incontestável ferocidade das falsas morais e valores, o homem volta ao seu interior e busca a sua essência no submundo vulcânico da alma em ebulição, como almas que comungam em silêncio.

Corvos-Paveseanos. Para aprofundar a leitura deste poema busco Pink Floiyd (Wish You Were Here) que me faz flutuar em orbitas de sensações imagéticas indescritíveis, pois para acompanhar a inclusão do poeta em Corvos-pavaseanos é preciso estar em transito via láctico, poesia de Serguilha como um bombo-leguero ecoa pelas veigas da poesia pictórica dos corpos-carne de Pavese e se funde a transitoriedade da vida-morte-vida dos corvos que sedentos da escrita poética arrancam os olhos da carne ignota dos Édipos que caminham perdidos, solitários em labirintos incicatrizáveis do mundo avernal, como zumbis sufocados pelo rodo cotidiano do ser estar virtual. Sua escrita mergulha na nostalgia da obra de Pavese, ela se funde e adentra nas profundezas do imaginário paveseano, alterando-lhe a carne e o modo de se expressar. O corpo-carne-humano onde habita a vida e a morte e se transbordam pelos abatimentos do tempo. Este corpo aparece como sugestionável ao caráter da paisagem, à assimilação do cenário psíquico, aos fenômenos de que carece de constante afirmação pessoal. Artaud dramaturgo, poeta, tarólogo, surrealista, tido como insano e acusado de louco, os gênios incompreendidos na escrita deste poeta, a poesia de Serguilha passa pelo corpus Artaudiano e transmigram os mundos do poeta insano contra toda a razão lógica “homem saudável”, a poesia serguilhiana mergulha em um mundo de lucidez embrionária do ser, onde a sociedade falida que dita ordens e parâmetros de sanidade é a doença dos ignotos zumbis que erram em uma sociedade de cultura e crenças sem sentido que sufocam a verdadeira essência poética dos ditos desajustados, dos perdidos, dos loucos insanos gênios que incompreendidos buscam mostrar toda sua profundeza de emoções em ebulição, artistas da fome que incansavelmente peregrinam perdidos em mundos desconexos de loucura e vertigem “Não quero que ninguém ignore meus gritos de dor e quero que eles sejam ouvidos”[9]. Enquanto isso Gaudí o mestre da arquitetura lapida a poesia e dá a circularidade dos feixes luminosos dos alvéolos soturnos das gargantas migratórias. Moby Dick de Melville, a fúria oceânica de Moby Dick e suas cicatrizes devastadoras dos arpões de seus algozes, mergulho nas profundezas do oceano, onde encontro meu mundo, meu mar, onde me sinto em casa, o mar da minha alma brinca neste poema como Koré brinca no seu jardim de narcisos, afinal, nas palavras do filósofo-poeta Merleau-Ponty “não serve de nada opor aqui distinção entre alma e corpo, pensamento e visão”, pois Serguilha regressa precisamente à experiência primordial da vida – corpo-alma.

Em Vulcânica Mauna Loa o poeta do submundo nos traz a música em suas mais divinas vozes, Billie Holiday; Sara Vaughan; Nina Simone a visceral; Ella Fitzgerald, a força da voz feminina, jazzística na retórica vulcânica do poeta do submundo… Difícil entendimento para muitos, mas ignotos não percebem que é só ler por trás do que se vê e ler com os olhos da alma e deixar a musica entrar nos poros despertando todos os sentidos, perceber essa força vibratória em seu mais alto e puro tom da voz-fúria da alma-mulher.

Atravessar espelhos e adentrar no mudo imagético do poema devir, jogos ritmados de palavras, como um jogo de amarelinha de Cortazar, ler, reler, empreender uma leitura da poesia de Serguilha pode ser uma brincadeira, de vai-e-vem; zig-zag; entrar em um balanço que sobe alto de lado a lado e as tranças de Koré voam alto em sua inocência de criança que tem todas as respostas das mais imagéticas questões do cosmo ao submundo da poesia. Feita para mentes inocentes.

Poetas-Cavalos-Sonâmbulos das escrituras-pyroclastic: Lahars dos Poetas-Surfistas É nas “Escrituras-pyroclastic, nas tonalidades cósmicas, nas transfusões dos magmas secretos” que a poesia de Serguilha mostra toda sua essência filosófica do mundo, onde me deparo frente a um mar de ondas em que deixo meu corpo surfar pelas ondas migratórias do mundo enquanto poesia. Estar frente ao poema Poetas-Surfistas me faz entrar em contato com todo o mundo de origens vertiginosamente violentas da criação do ser, do mundo, do início da matéria, profecias mitológicas em que me afogo frente aos refluxos silenciosos do big-bang, o som do mar lá fora enquanto escrevo me faz viajar cada vez mais ao cerne da poesia desse poeta que verte escrita em caleidoscópio de palavras.

 

 

 


[1] Serguilha, Luis. Aranea Diamata. (2011, p.109) In:___. Koa’e. Belo Horizonte: Anome Livros, 2011.

[2] Koa’e, p.25-6

[3] Lorca, Garcia. O poeta pede a seu amor que lhe escreva. In:http://www.astormentas.com/lorca.htm Acesso em 15 de março de 2012

[4] Koa’e, p.29

[5] Koa’e p.35

[6] Trakl, Georg. No Outono

[7] Idem, p.39

[8] Trakl, Georg. Sebastião no Sonho

[9] Antonin Artaud

 

 

REFERÊNCIAS

BACHELARD, Gaston. O direito de sonhar. 4.ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 1994.

CHAUÍ, Marilena (1983). Da realidade sem mistérios ao mistério do mundo: (Espinosa, Voltaire, Merleau-Ponty). 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993.

CAMUS, Albert. O mito de sísifo. Tradução e apresentação: Mario Gama. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989.

LORCA, Garcia. O poeta pede a seu amor que lhe escreva. In:http://www.astormentas.com/lorca.htm Acesso em 15 de março de 2012

MERLEAU-PONTY, M. (1984). Sobre a fenomenologia da linguagem (M. S. Chauí, Trad.). In M. S. Chauí (Org.), Maurice Merleau-Ponty: textos selecionados (pp.129-140). São Paulo: Abril Cultural. (Texto original publicado em 1960)

___________ . Signos. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

___________. A duvida de Cezanne. In Cadernos de Filosofia, Coimbra, Ideias e Comunicação, 1994.

SERGUILHA, Luis.  Koa’e. Belo Horizonte: Anome Livros, 2011.

 

 

 

 

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Rosângela Veiga nasceu no Rio Grande do Sul (Porto Alegre). É Bibliotecária e Museóloga pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Fez Especialização em Literatura Brasileira, também pela UFRGS. Estudou História da Arte na Universidade de Coimbra, quando escreveu esse ensaio em uma noite insone na eterna cidade dos estudantes, no ano de 2012.

 




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